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Ensaio - Por um Vocabulário Poético Autônomo: Perspectivas Interdisciplinares sobre a Construção de Objetos Ideais para as Necessidades Poéticas

Atualizado: 30 de ago.


1 Introdução


A relação entre linguagem poética e linguagem comum constitui um dos problemas centrais da teoria literária. Tradicionalmente, concebe-se a linguagem poética como uma elaboração, deformação ou intensificação da linguagem ordinária, operando através de figuras de linguagem, metáforas e jogos sonoros que transformam o material linguístico preexistente. Essa visão, muitas vezes derivada de uma concepção instrumental da linguagem, negligencia a capacidade intrínseca do discurso poético de forjar realidades e sentidos novos, não meramente reconfigurar os existentes.


Este ensaio propõe examinar uma perspectiva radical: a possibilidade de construção de um vocabulário poético verdadeiramente autônomo, constituído por "objetos ideais criados por uma convenção e essencialmente destinados às necessidades poéticas". Tal vocabulário não seria parasitário da linguagem comum, mas representaria um sistema semiológico independente, governado por suas próprias regras e finalidades estéticas. A originalidade da proposta reside na postulação de uma categoria de signos que não visa à representação do mundo, mas à sua constituição no ato poético, reverberando a crítica de Adorno (1970) à autonomia da arte [1].


2 Fundamentação Teórica


2.1 A Linguagem Poética como Sistema Autônomo


A concepção de uma linguagem poética autônoma encontra suas raízes no formalismo russo e no estruturalismo francês. Jakobson (2010) [2], ao definir a função poética como projeção do princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o eixo de combinação, já apontava para a especificidade irredutível da comunicação poética, desviando a atenção da função referencial para a mensagem em si. Contudo, essa perspectiva ainda opera sobre o arcabouço da linguagem comum, reorganizando seus elementos.


Nossa proposta vai além da mera reorganização funcional da linguagem, ou de um desvio da norma" na expressão de Mukarovsky (1964) [3]. Trata-se de postular a criação de unidades lexicais que não mantenham relação referencial direta com a linguagem comum, mas que constituam verdadeiros "objetos ideais" no sentido husserliano – entidades intencionais cuja existência se esgota em sua função poética. Essa autonomia radical se alinha a concepções que veem a poesia como uma forma de cognição alternativa, capaz de configurar o real de modo inédito, conforme argumentado por Bachelard (1960) [4] sobre a "imaginação material".


2.2 A Noção de Objeto Ideal: Expansão Husserliana e Diálogos Filosóficos


Husserl (2007) [5], em suas Investigações Lógicas, define os objetos ideais como entidades que não existem no mundo empírico, mas possuem validade objetiva no âmbito da consciência intencional. São, por exemplo, os conceitos matemáticos ou lógicos, cuja existência é puramente formal e atemporal. A transposição dessa noção para o domínio poético exige uma reinterpretação profunda.


Aplicado ao domínio poético, um objeto ideal seria uma unidade linguística que não designa nem descreve realidades extralinguísticas, mas cria sua própria realidade semântica através da convenção poética. Eles são constitutivos de um "mundo poético" que não se reduz ao "mundo da vida" [5].


Estes objetos ideais diferem fundamentalmente:


  • Dos signos linguísticos ordinários: Que mantêm relação referencial com o mundo e operam sob a lógica da correspondência (cf. Saussure, 2006 [6]).

  • Das figuras de linguagem tradicionais: Que operam por analogia, contraste ou deslocamento de sentido dentro de um sistema linguístico dado (como a metáfora, estudada por Ricoeur, 1975 [7]).

  • Dos neologismos: Que geralmente derivam de raízes preexistentes e visam preencher lacunas na linguagem comum, ou expandir seu léxico de forma gradativa (Ullmann, 1962 [8]).


A proposição de objetos ideais poéticos remete a discussões sobre a ontologia dos objetos fictícios e a intencionalidade na filosofia analítica e continental. Enquanto Meinong (1904) [9] postulava objetos "fora do ser" que poderiam ser intencionados, propõe-se um passo adiante: que esses objetos, no âmbito poético, não são apenas intencionados, mas constituem um novo modo de ser, validado pela experiência estética. O objeto ideal poético não é um mero conceito, mas uma forma-conteúdo intrinsecamente ligada à sua manifestação e recepção.


2.3 A Convenção Poética como Fundamento:  Entre Acordo e Constitucionalidade


A criação de objetos ideais poéticos pressupõe o estabelecimento de uma convenção específica – um acordo tácito entre poeta e leitor sobre a validade e o funcionamento deste vocabulário autônomo. Esta convenção não se baseia na correspondência com a realidade empírica, mas na adequação às necessidades expressivas da experiência poética.


A noção de convenção na filosofia da linguagem é complexa. Lewis, em Convention: A Philosophical Study (1969) [10], define convenções como regularidades de comportamento que surgem de um interesse comum em coordenação. No contexto poético, essa coordenação não é meramente pragmática, mas estética e ontológica. É um acordo sobre como novos sentidos e modos de ser serão estabelecidos e reconhecidos. Essa convenção, portanto, não é um mero fait accompli, mas um ato contínuo de validação e cocriação.


A convenção poética funciona como um contrato implícito que estabelece um universo de discurso particular, um "jogo de linguagem" no sentido de Wittgenstein (2001) [11], para quem as regras para o uso e a significação dos objetos ideais são internamente geradas e validadas pela prática. A eficácia dessa convenção reside na sua capacidade de sustentar a autonomia do vocabulário, tornando-o inteligível para aqueles que aceitam participar do jogo.


3 Precedentes Históricos e Literários


Esta seção é rica em exemplos, mostrando a historicidade da busca por autonomia poética.


3.1 As Experiências Simbolistas: Rumo ao "Idioma Puro"


O movimento simbolista do século XIX já prenunciava esta autonomização do vocabulário poético. Mallarmé (2010) [12], em particular, concebia a poesia como criação de um "idioma puro", onde as palavras não remetessem às coisas, mas às ideias das coisas. Seu projeto de "Livro" absoluto pressupunha um vocabulário poético completamente autônomo, uma arquitetura verbal que existiria por si mesma, ecoando a busca de uma "música das palavras" que escapasse à tirania da representação. Esse desejo de pureza e autonomia pode ser interpretado como uma primeira tentativa de forjar objetos ideais, desvinculando o signo de seu referente externo.


3.2 As Vanguardas do Século XX: O Desnudamento do Signo


As vanguardas históricas levaram esta tendência às últimas consequências:


  • Dadaísmo: A criação de palavras desprovidas de significado referencial, como os poemas sonoros de Hugo Ball, apontava para a possibilidade de um vocabulário poético puro. O ready-made dadaísta, por exemplo, transfere o objeto do mundo comum para o domínio da arte, conferindo-lhe uma nova "idealidade" estética, desfuncionalizada e autônoma.

  • Futurismo: As "palavras em liberdade" de Marinetti buscavam romper com as convenções semânticas tradicionais, criando unidades expressivas autônomas. A desarticulação sintática e a ênfase na materialidade fônica das palavras representavam uma agressão ao vocabulário comum, buscando libertar o signo para novas configurações.

  • Letrismo: Isidore Isou e o movimento letrista propuseram explicitamente a criação de uma linguagem poética baseada em elementos mínimos (letras e sons) independentes da linguagem comum. A arte letrista se concentrava na grafia e na sonoridade dos fonemas, transformando-os em objetos estéticos em si, despojados de sua função comunicativa referencial.


3.3 Experiências Contemporâneas: Reinventando o Léxico Poético


Na literatura contemporânea, encontramos diversas tentativas de construção de vocabulários poéticos autônomos:


  • A "língua da noite" de Herberto Helder, que cria uma densidade léxica e simbólica por meio de associações inesperadas e um vocabulário que se torna quase um glossário iniciático.

  • Os ideogramas verbais de E.E. Cummings, que exploram a dimensão visual e espacial da palavra no poema, transformando-a em um objeto gráfico com sua própria lógica interna. As experiências de poesia visual concreta, onde a palavra se torna imagem e forma, e seu significado emerge da sua configuração espacial, não apenas da sua semântica lexical.

  • A poesia digital e seus algoritmos generativos, que podem criar sequências textuais que, embora construídas a partir de dados existentes, produzem combinações inusitadas, aproximando-se da noção de "objeto ideal" em sua natureza algorítmica e não-humana, como veremos mais adiante.


4. Análise das Possibilidades e Limitações

4.1 Vantagens Teóricas


Um vocabulário poético autônomo ofereceria:


  • Precisão Expressiva: Objetos ideais criados especificamente para necessidades poéticas permitiriam uma precisão expressiva impossível com o vocabulário comum, que é sempre generalista e polissêmico.

  • Independência Semântica: Libertaria a poesia da servidão referencial, permitindo a criação de mundos poéticos completamente autônomos, não atrelados à realidade extralinguística.

  • Renovação Estética: Possibilitaria experiências estéticas radicalmente novas, não condicionadas pelas limitações da linguagem ordinária, expandindo o campo do que é pensável e "sentível" através da arte.


4.2 Desafios Práticos


  • Problema da Comunicabilidade: Como garantir a transmissão de sentido se os objetos ideais não mantêm relação com a experiência comum? A ausência de um código compartilhado poderia levar à completa opacidade.

  • Questão da Convenção: Como estabelecer e manter convenções poéticas suficientemente estáveis para permitir a criação e recepção da obra? A convenção requer um aprendizado e uma aceitação que podem ser onerosos.

  • Risco de Hermetismo: A autonomização completa poderia resultar em incomunicabilidade absoluta, limitando a experiência poética a um círculo extremamente restrito de "iniciados".


4.3 Estratégias de Mediação


Para superar estas limitações, propomos estratégias de mediação:


  • Autonomia Gradual: Processo progressivo de autonomização, mantendo inicialmente pontes com a linguagem comum, permitindo que os objetos ideais sejam "ancorados" em alguma familiaridade.

  • Convenção Contextual: Estabelecimento de convenções específicas no interior de cada obra ou conjunto de obras, criando universos semânticos que se autojustificam em seu próprio contexto.

  • Isotopias Poéticas: Criação de redes semânticas internas que conferem coerência ao vocabulário autônomo. Isotopias, no sentido da semiótica greimasiana (Greimas; Courtés, 1982 [13]), seriam as recorrências de traços semânticos que criam uma unidade de sentido, mesmo que abstrata, no texto.


5 Proposta de Metodologia Construtiva


5.1 Princípios Fundamentais


  • Princípio da Necessidade: Cada objeto ideal deve responder a uma necessidade expressiva específica não satisfeita pelo vocabulário comum. A criação deve ser motivada por uma "lacuna ontológica" na linguagem comum.

  • Princípio da Coerência: Os objetos ideais devem formar um sistema coerente, governado por regras internas consistentes, mesmo que essas regras sejam radicalmente diferentes da gramática ou semântica usual.

  • Princípio da Eficácia: A convenção estabelecida deve ser suficiente para garantir a funcionalidade poética dos objetos criados, ou seja, sua capacidade de gerar uma experiência estética.


5.2 Procedimentos Técnicos


  • Análise das Lacunas: Identificação sistemática das limitações expressivas da linguagem comum no contexto poético, mapeando as "zonas de silêncio" da linguagem ordinária.

  • Criação Morfológica: Desenvolvimento de processos de criação lexical independentes da etimologia tradicional. Isso pode envolver a combinação de morfemas não usuais, sons, ou até mesmo símbolos gráficos, inspirando-se nas vanguardas.

  • Validação Contextual: Teste da eficácia dos objetos ideais em contextos poéticos específicos, observando sua ressonância e capacidade de evocação no leitor-cocriador.


5.3 Exemplo Prático


Considere-se a necessidade de expressar o estado de nostalgia antecipada – a tristeza presente pela perda futura de um momento que ainda está sendo vivido. A linguagem comum não oferece termo preciso para esta experiência. Podemos criar o objeto ideal "prelúgio" (de pre- + lúgio, como em "prelúdio", mas com valor semântico próprio, não derivativo), estabelecendo convencionalmente seu significado poético específico. Este "prelúgio" não é um prelúdio musical nem um evento inicial, mas uma sensação ontológica única, cujo sentido é estabelecido e validado no interior do sistema poético que o emprega.


6 Implicações Filosóficas: Um Aprofundamento Ontológico e Epistemológico


A proposta de um vocabulário poético autônomo não é meramente linguística ou estética; ela interpela as mais profundas questões da filosofia: a natureza do ser, a possibilidade do conhecimento e os limites da linguagem.


6.1 Ontologia da Linguagem Poética

6.1.1 O Estatuto Ontológico dos Objetos Ideais Poéticos


A criação de objetos ideais poéticos implica uma revisão radical da ontologia da linguagem. Enquanto a linguagem comum opera através de signos que remetem a referentes empíricos ou conceituais preexistentes, os objetos ideais poéticos constituem uma terceira categoria ontológica: entidades que possuem realidade específica sem reduzir-se nem ao mundo físico nem ao mundo das idealidades lógicas.


Seguindo a fenomenologia husserliana, mas expandindo-a para o domínio estético e confrontando-a com outros pensadores da existência, podemos distinguir três modos de ser dos objetos linguísticos:


  • Ser-Real (Reales Sein): O modo de ser dos signos que designam objetos empíricos. A palavra "mesa" possui ser-real enquanto remete a objetos físicos no mundo. Este é o domínio da referência e da empiria.

  • Ser-Ideal (Ideales Sein): O modo de ser dos conceitos lógico-matemáticos. O número "dois" possui ser-ideal: não existe empiricamente, mas tem validade objetiva universal. É o domínio da formalidade e da necessidade.

  • Ser-Poético (Poetisches Sein): O modo de ser específico dos objetos ideais criados pela convenção poética. Não remetem ao empírico nem possuem validade lógica universal, mas criam sua própria região ontológica através da experiência estética. Este ser-poético não é meramente ficcional ou imaginário; ele constitui um modo de presentificação, uma "abertura do ser" que se manifesta no encontro com a obra. Como sugere Heidegger (1977) [14], a arte "traz à luz" o ser, revelando-o em sua abertura. O objeto ideal poético, portanto, não é um ente no mundo, mas cria um horizonte de inteligibilidade.


6.1.2 A Temporalidade Específica do Ser-Poético: O Kairos da Criação


Os objetos ideais poéticos possuem temporalidade própria, diferente tanto da permanência atemporal das idealidades lógicas quanto da duração empírica dos objetos físicos. Seu ser se atualiza no momento da experiência poética – nem antes (como possibilidade lógica) nem depois (como lembrança empírica), mas no instante da leitura criativa.


Esta temporalidade específica aproxima-se do que Heidegger (2005) [15] denomina "momento oportuno" (Augenblick) – o tempo próprio da existência autêntica, onde passado, presente e futuro se articulam numa síntese originária. O objeto ideal poético existe neste tempo kairológico da experiência estética, um tempo de irrupção e revelação. Ele não preexiste à sua atualização na consciência intencional, nem sobrevive como um dado imutável; ele é co-constituído na relação entre o objeto e a consciência que o apreende, tornando-se um evento. A duração do "ser-poético" é a duração da própria experiência estética.


6.1.3 A Questão da Individuação: A Singularidade da Convenção


Como se individua um objeto ideal poético? Não pela matéria (como os objetos físicos) nem pela forma lógica (como os conceitos matemáticos), mas pela singularidade da convenção estética que o constitui. Cada objeto ideal poético é irrepetível, mesmo quando emprega material linguístico semelhante. Sua individuação reside na precisão de sua função poética e na rede de relações que estabelece dentro de um dado sistema poético.


A individuação de um objeto ideal poético é, portanto, relacional e contextualmente determinada pela "convenção contextual" mencionada anteriormente. Ele é único porque a necessidade expressiva que o gerou e o sistema de relações que o validam são também únicos. Essa singularidade desafia a serialidade e a reprodutibilidade da linguagem comum, aproximando a obra poética de uma "aura" no sentido benjaminiano (Benjamin, 1987 [16]), ainda que construída artificialmente.


6.2 Epistemologia da Experiência Poética: Um Saber do Não-Conceitual

6.2.1 O Conhecimento Poético como Forma Específica de Saber


Se os objetos ideais poéticos não remetem ao mundo empírico nem possuem validade lógica universal, que tipo de conhecimento proporcionam? Defendemos que constituem uma forma específica e irredutível de conhecimento: o conhecimento poético. Este não se traduz em proposições verificáveis ou deduções lógicas, mas em uma forma de compreensão existencial e afetiva.


Este conhecimento poético diferencia-se:


  • Do conhecimento científico: Não busca universalidade nem verificabilidade empírica, mas singularidade e intensidade experiencial. Seu objetivo não é descrever o mundo, mas reconfigurá-lo subjetivamente.

  • Do conhecimento filosófico (conceitual): Não opera por conceitos abstratos, mas por intuições concretas corporificadas em objetos ideais específicos. É um saber que não se articula em categorias, mas em manifestações. Poderíamos aproximá-lo do "saber silencioso" (Polanyi, 1966 [17]) ou do "conhecimento como familiaridade" (Russell, 2018 [18]).

  • Do conhecimento prático: Não visa à ação eficaz no mundo, mas à transformação da experiência subjetiva. Seu valor não é utilitário, mas existencial e contemplativo.


6.2.2 A Estrutura Intencional da Consciência Poética: Para Além da Referência


A consciência poética, ao apreender objetos ideais autônomos, desenvolve estrutura intencional específica. Não se trata de consciência "de algo" (consciência referencial comum) nem de consciência "que algo" (consciência judicativa), mas de consciência criativa que constitui seus próprios objetos intencionais. Essa forma de intencionalidade é mais próxima do "ver como" de Wittgenstein (2001) [11] do que do "ver que", implicando uma participação ativa na construção do sentido.


Esta consciência poética opera através do que podemos denominar "intuição categorial estética": capacidade de apreender diretamente objetos ideais que não se dão nem na percepção sensível nem na intelecção conceitual, mas na experiência estética pura. Essa intuição não é passiva; é uma abertura ativa para a constituição do inusitado, uma espécie de epoché fenomenológica aplicada ao uso referencial da linguagem.


6.2.3 O Problema da Verdade Poética: Uma Verdade de Abertura e Iluminação


Qual o critério de verdade para enunciados que empregam objetos ideais poéticos? Não pode ser a correspondência com fatos empíricos (adaequatio rei et intellectus) nem a coerência lógica formal (cohaerentia). Propomos o conceito de "verdade estética": adequação entre o objeto ideal e a necessidade expressiva que o motivou.


Um objeto ideal poético é "verdadeiro" quando realiza plenamente sua função de expressar aspectos da experiência humana que permaneceriam inexprimíveis pelos meios linguísticos ordinários. Sua verdade mede-se pela intensidade e precisão da iluminação que proporciona. Essa "verdade" não é uma representação, mas uma revelação, um desvelamento do ser que o discurso comum oculta. Ela ressoa com a ideia de que a arte é um modo de trazer à luz a verdade (Heidegger, 1977[14]), não como uma proposição factual, mas como um evento ontológico. O critério de verdade aqui é a aletheia, o desocultamento, a manifestação do que antes estava velado.


6.2.4 A Hermenêutica dos Objetos Ideais: Co-criação de Sentido


Como interpretar textos que empregam vocabulários poéticos autônomos? A hermenêutica tradicional, baseada na compreensão de sentidos preexistentes e na reconstituição da intenção do autor (Schleiermacher, 1998 [19]), mostra-se inadequada. Necessitamos de hermenêutica criativa: processo interpretativo que não decodifica sentidos dados, mas co-cria as convenções que tornam possível a significação.


O intérprete de objetos ideais poéticos não é descobridor de sentidos ocultos, mas co-autor das convenções semânticas. A interpretação torna-se ato criativo análogo à própria criação poética. Essa concepção dialógica da hermenêutica encontra eco em Gadamer (2004) [20], para quem a compreensão é uma "fusão de horizontes", onde o sentido da obra emerge no diálogo entre o texto e o intérprete, em vez de ser uma mera reprodução. Ricoeur (1986) [21] também aponta para a capacidade do texto de abrir novos mundos, exigindo do leitor uma apropriação criativa.


6.3 Filosofia da Linguagem e Objetos Ideais Poéticos: Desafios à Tradição

6.3.1 Crítica da Concepção Representacional da Linguagem: O Poder Poiético


A possibilidade de objetos ideais poéticos questiona fundamentalmente a concepção representacional da linguagem, segundo a qual as palavras "representam" ou "designam" realidades extralinguísticas preexistentes. Essa crítica se alinha a diversas correntes da filosofia do século XX, como o segundo Wittgenstein (2011) [11], que enfatiza o uso da linguagem em "jogos de linguagem" diversos, ou a desconstrução derridiana, que revela a instabilidade inerente ao signo e a primazia da diferença (Derrida, 1995 [22]).


Os objetos ideais poéticos não representam: criam. Não designam: constituem. Sua função não é referencial mas poiética (do grego poiesis = criação). Através deles, a linguagem revela sua capacidade ontológica fundamental: não apenas falar sobre o ser, mas criar modalidades inéditas de ser. A linguagem, nesse sentido, é um fazer, um modo de intervir no real, não apenas de refleti-lo.


6.3.2 A Questão da Arbitrariedade do Signo: Criatividade e Necessidade


Saussure (2006) [6] estabeleceu o princípio da arbitrariedade do signo linguístico: a relação entre significante e significado seria convencional, não natural. Os objetos ideais poéticos radicalizam este princípio: a relação entre significante e função poética é não apenas arbitrária, mas criativa – estabelecida pela convenção estética específica.


No entanto, esta arbitrariedade não implica casualidade. A criação de objetos ideais obedece à necessidade estética interna: cada objeto ideal surge para satisfazer demanda expressiva específica que as convenções linguísticas existentes não conseguem atender. É uma arbitrariedade motivada, uma escolha livre que se torna necessária pela insuficiência da linguagem comum. É um movimento que Benveniste (1966) [23] poderia descrever como uma "significação" que precede a "referência", onde o sentido é construído ativamente.


6.3.3 Linguagem Ordinária e Linguagem Poética: Relação de Fundação Invertida


Qual a relação ontológica entre linguagem comum e linguagem poética autônoma? Defendemos tese paradoxal: embora geneticamente posterior (surge historicamente após a linguagem comum), a linguagem poética é ontologicamente anterior – revela possibilidades da linguagem que permanecem latentes no uso ordinário.


A linguagem poética não é derivada da comum, mas realização de potencialidades originárias que a linguagem comum mantém reprimidas pela necessidade de comunicação eficaz. Os objetos ideais poéticos manifestam a essência criativa da linguagem em estado puro, desvelando uma dimensão fundamental da língua que o uso pragmático rotiniza e esconde. A poesia, assim, não é um subproduto da linguagem, mas uma de suas manifestações mais autênticas e originárias.


6.4 Estética Filosófica e Criação Linguística: A Arte como Desvelamento

6.4.1 A Experiência Estética como Revelação Ontológica


A criação e recepção de objetos ideais poéticos constitui experiência estética em sentido forte: não mero deleite subjetivo, mas revelação de dimensões do real inacessíveis por outros meios cognitivos.


Seguindo intuições heideggerianas sobre a arte como desvelamento do ser (Heidegger, 1997 [14]), propomos que os objetos ideais poéticos operam verdadeira abertura ontológica: criam regiões inéditas de sentido, ampliando o horizonte do experienciável. A obra de arte não representa a verdade, mas é o evento da verdade, o que permite o surgimento de um mundo. Nesse sentido, os objetos ideais poéticos, ao criarem novas unidades de sentido, criam também novos "mundos" de experiência e compreensão.


6.4.2 O Sublime Linguístico: Confronto com a Potência Criativa


A experiência de objetos ideais completamente autônomos pode suscitar sentimento específico: o sublime linguístico. Diferentemente do sublime natural (infinito sensível, como em Burke, 1757 [24]) ou matemático (infinito inteligível, como em Kant, 2002, [25]), o sublime linguístico surge do confronto com o infinito criativo da linguagem – sua capacidade inesgotável de gerar novos mundos de sentido, para além de qualquer limite da representação conceitual.


O sublime linguístico não é uma questão de forma perfeita ou de representação de algo vasto, mas de uma sensação de vertigem diante da potência da linguagem de transcender seus próprios limites convencionais, de criar o que antes não existia, suscitando espanto e admiração pela sua capacidade de inovação e autossuperação. É uma experiência que desafia a categorização e a compreensão total, remetendo ao ilimitado do poético.


6.4.3 Ética da Criação Linguística: Responsabilidade e Transformação


A criação de vocabulários autônomos levanta questões éticas fundamentais:


  • Responsabilidade Ontológica: O poeta que cria objetos ideais assume responsabilidade pelos novos modos de ser que introduz no mundo. Esta responsabilidade é análoga à do legislador: criar não apenas obras, mas possibilidades inéditas de existência. A linguagem, ao constituir o mundo, investe o criador de uma responsabilidade sobre a forma como esse mundo se manifesta e é habitado (Levinas, 1993 [26]).

  • Questão da Comunicabilidade: Até que ponto é legítimo criar linguagens que podem excluir comunidades interpretativas não iniciadas? Como equilibrar inovação radical e democratização cultural? Essa tensão entre a necessidade de inovação e o imperativo da acessibilidade é um dilema ético central.

  • Problema da Transmissão: Como garantir que vocabulários poéticos autônomos sejam transmitidos às gerações futuras sem perder sua força criativa original? A durabilidade da convenção e a vitalidade da comunidade interpretativa são cruciais.


6.4.4 A Dimensão Política dos Objetos Ideais: Resistência e Emancipação


Vocabulários poéticos autônomos possuem dimensão política implícita: contestam o monopólio das convenções linguísticas estabelecidas, criando espaços de liberdade semântica. Cada objeto ideal é micro-revolução: instauração de nova possibilidade expressiva que escapa ao controle das normas linguísticas dominantes. Essa prática poética desestabiliza as ordens simbólicas hegemônicas, funcionando como uma crítica à linguagem como instrumento de poder e dominação (Foucault, 1996, [27]).


No entanto, esta dimensão libertária convive tensamente com risco elitista: a autonomização extrema pode resultar em hermetismo que exclui amplas comunidades do acesso à experiência poética. A política dos objetos ideais, portanto, reside tanto em sua capacidade de liberar a linguagem quanto no desafio de compartilhar essa liberdade.


7 Recepção e Horizontes de Expectativa: O Diálogo Criativo

7.1 O Leitor como Co-criador: A Experiência Hermenêutica


Um vocabulário poético autônomo exige do leitor participação ativa na construção do sentido. O leitor torna-se co-criador das convenções que governam os objetos ideais, e não um mero decodificador. Essa perspectiva ressoa fortemente com a hermenêutica de recepção, que enfatiza o papel ativo do leitor na constituição do significado da obra. O "horizonte de expectativa" do leitor, um conceito chave em Gadamer (2004) [20] e na Estética da Recepção (Jauss, 1982, [28]), é fundamentalmente transformado pela necessidade de forjar novas compreensões.


7.2 Comunidades Interpretativas: A Validação Coletiva


A validação de um vocabulário poético autônomo depende da formação de comunidades interpretativas capazes de reconhecer e aplicar as convenções estabelecidas. Essas comunidades funcionam como espaços de "negociação de sentido", onde a viabilidade e a relevância dos objetos ideais são testadas e consolidadas através de práticas de leitura e discussão.


7.3 Perspectivas de Institucionalização: Desafios e Possibilidades


Como poderiam vocabulários poéticos autônomos alcançar reconhecimento institucional? Que mecanismos de transmissão e preservação seriam necessários? A institucionalização envolveria a criação de glossários, estudos críticos, e talvez, a inclusão em currículos acadêmicos, garantindo a sua perenidade e a formação de novos leitores-cocriadores.


8 Aplicações Contemporâneas e Estudos de Caso: A Poética na Ponta da Tecnologia e da Experiência

8.1 Poesia Digital e Inteligência Artificial: Novas Fronteiras da Criação

8.1.1 Algoritmos Generativos e Criação de Objetos Ideais


O desenvolvimento de algoritmos de geração textual baseados em redes neurais profundas (como GPT, BERT e variantes) oferece ferramentas inéditas para a criação sistemática de objetos ideais poéticos. Estes sistemas podem ser treinados não para reproduzir padrões linguísticos existentes, mas para gerar elementos que maximizem critérios estéticos específicos, muitas vezes através da combinação inesperada de elementos (Goldberg, 2017, [29]).


Experimentos com adversarial training em poesia computacional demonstram a possibilidade de criar vocabulários que simultaneamente respeitam restrições formais (métricas, rimas, aliterações) e inovam semanticamente através de combinações lexicais inesperadas. Os objetos ideais gerados algoritmicamente possuem propriedade interessante: são criados por processo completamente objetivo (computacional), mas destinados a experiências subjetivas (estéticas), levantando questões sobre autoria e intencionalidade.


8.1.2 Hibridização Humano-Máquina na Criação Poética: A Simbiose Criativa


A colaboração entre poetas humanos e sistemas de IA na criação de vocabulários autônomos representa laboratório privilegiado para testar nossas hipóteses. O poeta fornece intuições estéticas e necessidades expressivas; a máquina gera variações sistemáticas e verifica coerência formal. Esta simbiose criativa pode acelerar exponencialmente o desenvolvimento de vocabulários poéticos autônomos, questionando a fronteira entre a criatividade humana e a artificial.


Projetos experimentais como o Oulipo digital (inspirados no Oulipo, Ouvroir de littérature potentielle) demonstram como restrições algorítmicas podem paradoxalmente liberar criatividade linguística, forçando a descoberta de soluções expressivas que permaneceriam inacessíveis à criação puramente intuitiva.


8.2 Estudos de Caso em Literatura Contemporânea: Exemplos da Radicalidade Poética

8.2.1 Anne Carson e a Linguagem Arqueológica: Ressignificando Termos


A poeta canadense Anne Carson desenvolve vocabulário que funde terminologia arqueológica com experiência erótica, criando objetos ideais que não são nem descrições científicas nem expressões líricas convencionais (Carson, 1998, [30). Palavras como stratigraphy (estratigrafia) adquirem carga poética autônoma, designando camadas temporais da experiência amorosa irredutíveis tanto à geologia quanto à psicologia comum. Carson utiliza o léxico de uma disciplina para expressar a interioridade de outra, criando um campo semântico híbrido e singular.


8.2.2 Christian Bök e a Poesia Xenolinguística: O Transumano no Poema


O projeto "Xenotext" de Christian Bök representa experimento radical de criação de vocabulário poético biologicamente codificado. Bök desenvolve poema que pode ser traduzido em sequência genética e implantado em bactéria, criando literatura que existe simultaneamente como texto e como organismo vivo (Bök, 2011, [31]).


Este projeto exemplifica criação de objetos ideais que transcendem completamente a linguagem humana comum, existindo em múltiplos níveis ontológicos (textual, genético, biológico) através de convenções que articulam sistemas semióticos heterogêneos. Ele explora a "vida" do texto para além da sua dimensão meramente simbólica, entrando em diálogo com o pós-humanismo (Haraway, 1991, [32]).


8.2.3 Theresa Hak Kyung Cha e a Multilinguagem Poética: A Língua dos Interstícios


Em "Dictee", Cha cria vocabulário poético que opera através de interferências entre línguas diferentes (inglês, francês, coreano), gerando objetos ideais que não pertencem plenamente a nenhum sistema linguístico nacional (Cha, 1982, [33]). Estas "inter-palavras" existem nos interstícios entre as línguas, criando experiências expressivas acessíveis apenas através desta multilinguagem poética específica. A obra de Cha é um testemunho da capacidade da linguagem de forjar sentido na diáspora e na hibridez cultural.


8.3 Tecnologias Emergentes e Vocabulários Poéticos: A Palavra Materializada

8.3.1 Realidade Virtual e Experiência Linguística Imersiva


Tecnologias de realidade virtual e aumentada abrem possibilidades inéditas para a criação de objetos ideais poéticos. Palavras podem adquirir existência espacial tridimensional, cores sinestésicas, propriedades físicas simuladas. O vocabulário poético torna-se literalmente "corpo" virtual manipulável.


Experimentos com "cave automatic virtual environments" (CAVEs) para poesia demonstram como objetos ideais podem ganhar presença física simulada, criando experiências estéticas que envolvem todo o aparato sensório-motor do receptor, movendo a poesia do puramente simbólico para o encarnado.


8.3.2 Interfaces Cérebro-Computador e Criação Linguística Direta


Desenvolvimentos em interfaces cérebro-computador sugerem possibilidade futura de criação linguística que perpassa completamente a articulação vocal ou escrita. Pensamentos poéticos poderiam ser traduzidos diretamente em objetos ideais digitais, eliminando mediações técnicas tradicionais.


Esta perspectiva levanta questões filosóficas fascinantes: objetos ideais criados diretamente pelo pensamento, sem mediação da linguagem comum, representariam formas puras de expressão poética ou meras projeções neurológicas? Isso questiona a própria natureza da autoria e da materialidade do texto.


9 Dimensões Antropológicas e Sociolinguísticas: A Poesia como Fenômeno Social

9.1 Rituais de Criação e Transmissão: A Poesia como Iniciação

9.1.1 Comunidades Poéticas como Grupos Iniciáticos


A criação e manutenção de vocabulários poéticos autônomos exige formação de comunidades interpretativas que funcionam como grupos iniciáticos. Semelhantemente às sociedades secretas tradicionais, estas comunidades desenvolvem rituais específicos de transmissão do conhecimento poético.


Estudos antropológicos sobre línguas rituais (como o sânscrito védico ou as glossolalias pentecostais) oferecem modelos para compreender como vocabulários especializados se mantêm vivos através de práticas comunitárias específicas (Tambiah, 1968 [34]). A recitação, memorização e interpretação coletiva funcionam como mecanismos de preservação e renovação dos objetos ideais, garantindo sua vitalidade para além da intenção do criador inicial.


9.1.2 Hibridização Cultural e Criação Lexical: A Linguagem em Contato


Em contextos de contato cultural intenso, emergem frequentemente vocabulários híbridos que não pertencem completamente a nenhuma das tradições em contato. Estes "pidgins poéticos" constituem laboratórios naturais para observar a criação de objetos ideais: elementos linguísticos que ganham significado através de convenções emergentes, não deriváveis das línguas originais.


A literatura pós-colonial oferece exemplos abundantes desta criatividade linguística: escritores como Édouard Glissant (creole) (Glissant, 1981 [35]) ou Juan Gelman (iídiche-espanhol) criam vocabulários que são simultaneamente memória cultural e inovação expressiva, forjando identidades e realidades através do hibridismo linguístico.


9.2 Variação Sociolinguística e Inovação Poética: O Estilo como Dialeto

9.2.1 Registro Poético como Dialeto Social


Vocabulários poéticos autônomos podem ser analisados como formas extremas de variação sociolinguística – "dialetos" específicos de comunidades culturais definidas não por geografia ou classe social, mas por participação em tradições estéticas particulares. Isso se conecta à sociologia da linguagem, que estuda como as variedades linguísticas são usadas e valorizadas em diferentes grupos sociais (Labov, 1972 [36]).


Esta perspectiva sociolinguística revela que a criação de objetos ideais não ocorre no vazio, mas dentro de sistemas sociais que regulam, legitimam e transmitem inovações linguísticas. O "sucesso" de um vocabulário poético depende de sua aceitação por comunidades interpretativas capazes de reconhecer sua validade estética.


9.2.2 Prestígio Cultural e Difusão de Inovações: O Papel da Autoridade


A teoria da difusão de inovações, aplicada ao campo linguístico, sugere que vocabulários poéticos autônomos seguem padrões sociológicos específicos: são criados por "inovadores" (poetas experimentais), adotados por "primeiros adotantes" (críticos e leitores especializados), e eventualmente difundidos para "maioria precoce" (comunidades literárias ampliadas).


O prestígio cultural dos criadores influencia decisivamente a velocidade e amplitude desta difusão (Bourdieu, 1996 [37]). Vocabulários poéticos criados por figuras prestigiosas (como Mallarmé ou Joyce) têm maior probabilidade de institucionalização que inovações de autores marginais, demonstrando a intersecção entre a autonomia estética e as dinâmicas de poder simbólico.


10 Perspectivas Ecológicas e Ambientais: A Linguagem em Crise e Renovação

10.1 Ecologia Linguística e Diversidade Expressiva: Os Nichos da Palavra

10.1.1 Vocabulários Poéticos como Nichos Ecológicos


A metáfora ecológica pode ser aplicada produtivamente ao campo linguístico: diferentes registros e vocabulários ocupam "nichos" específicos no ecossistema comunicativo (    Mühlhäusler, 2003 [38]). Vocabulários poéticos autônomos criariam novos nichos expressivos, aumentando a biodiversidade linguística.


Esta perspectiva ecológica sugere que a criação de objetos ideais não representa luxo cultural dispensável, mas necessidade evolutiva: sistemas linguísticos que não se renovam através de inovações expressivas tendem à entropia e extinção, perdendo a capacidade de nomear e compreender o mundo em constante mudança.


10.1.2 Sustentabilidade de Vocabulários Autônomos: Vitalidade e Adaptação


Como garantir a sustentabilidade de vocabulários poéticos que não possuem suporte referencial na experiência comum? A teoria ecológica sugere que nichos linguísticos se mantêm viáveis quando:


  • Atendem necessidades expressivas reais das comunidades;

  • Mantêm conexões (mesmo tênues) com outros registros linguísticos, evitando o isolamento total;

  • Desenvolvem mecanismos eficazes de reprodução cultural, como a educação e a crítica;

  • Adaptam-se às mudanças no ambiente comunicativo geral.


10.2 Crise Ambiental e Renovação da Linguagem Poética: Nomeando o Antropoceno

10.2.1 Vocabulários Poéticos para a Era Antropocênica


A crise ambiental contemporânea exige renovação radical dos recursos expressivos humanos. A linguagem comum, moldada por paradigmas antropocêntricos e desenvolvimentistas, mostra-se inadequada para expressar experiências ecológicas complexas: mudanças climáticas, extinção de espécies, poluição microplástica, acidificação oceânica (Haraway, 2016 [39]).


A criação de objetos ideais especificamente destinados à expressão da experiência ambiental contemporânea representa urgência cultural concreta. Necessitamos palavras que expressem, por exemplo, a experiência de viver sabendo-se responsável pelo colapso climático, ou a nostalgia por paisagens que nunca existirão novamente. É uma busca por uma linguagem que possa abarcar o trauma e a responsabilidade do Antropoceno.


10.2.2 Temporalidades Ecológicas e Linguagem: O Tempo Não-Humano


A crise ecológica revela temporalidades que excedem a experiência humana individual: tempo geológico, tempo evolutivo, tempo climático. Estas temporalidades exigem vocabulários específicos – objetos ideais capazes de corporificar linguisticamente experiências temporais trans-humanas, que não se encaixam nas escalas da vida cotidiana.


11 Questões Éticas e Bioética da Criação Linguística: O Poder da Nomenclatura

11.1 Responsabilidade Ontológica do Criador: O Ato de Dar à Luz

11.1.1 Criação Linguística e Alteração da Realidade


Se a linguagem não apenas descreve mas constitui aspectos da realidade humana (Wittgenstein, 2001 [11]; Whorf, 1956 [40), a criação de novos vocabulários representa forma de modificação do real. O criador de objetos ideais assume responsabilidade ontológica: suas criações linguísticas alteram as possibilidades de experiência disponíveis para sua comunidade cultural.


Esta responsabilidade é análoga à do engenheiro genético ou do urbanista: intervém em sistemas complexos cujas consequências a longo prazo são imprevisíveis. A ética da criação linguística deve considerar efeitos não intencionais dos vocabulários criados, incluindo a reconfiguração da percepção e da cognição.


11.1.2 Consentimento Informado e Inovação Linguística: Consciência do Impacto


Como aplicar princípios bioéticos à criação linguística? A noção de "consentimento informado" pode ser adaptada: comunidades interpretativas devem compreender as implicações cognitivas e culturais de adotar vocabulários poéticos autônomos.


A criação de objetos ideais não é ato neutro: modifica estruturas cognitivas dos receptores, influencia processos de pensamento, altera padrões de associação mental. Essas modificações devem ser objeto de reflexão ética explícita, dada a profunda influência da linguagem na formação do sujeito e do mundo.


11.2 Diversidade Linguística e Justiça Cultural: A Inovação como Inclusão

11.2.1 Democratização vs. Elitização: O Acesso à Criatividade


A criação de vocabulários poéticos autônomos pode contribuir para democratização cultural (oferece ferramentas expressivas novas para comunidades marginalizadas) ou para elitização (cria barreiras adicionais ao acesso cultural). Esta tensão exige cuidado ético específico.


Projetos de criação coletiva de vocabulários poéticos – envolvendo comunidades diversas na criação de objetos ideais – podem representar formas de democratização da inovação linguística, contrapondo-se ao modelo tradicional de criação individual por "gênios" isolados, promovendo a "linguagem como prática social" (Bourdieu, 1991 [41]).


11.2.2 Preservação e Inovação: O Equilíbrio da Tradição e do Novo


Como equilibrar preservação de tradições linguísticas existentes com inovação através de vocabulários autônomos? A criação de objetos ideais não deve implicar desvalorização de patrimônios linguísticos tradicionais, mas ampliação do repertório expressivo disponível.


Estratégias de "conservação criativa" podem integrar elementos de línguas ameaçadas de extinção em vocabulários poéticos contemporâneos, oferecendo novos contextos de uso para elementos linguísticos que perderam função comunicativa cotidiana, e assim, promovendo uma ecologia linguística mais rica e justa.


12 Considerações Finais: Síntese Interdisciplinar e Perspectivas Futuras

12.1 Convergência Interdisciplinar: A Linguagem como Fenômeno Complexo


A investigação interdisciplinar da possibilidade de construção de vocabulários poéticos autônomos revela convergências notáveis entre campos aparentemente díspares do conhecimento contemporâneo.


Da psicanálise, incorporamos a compreensão de que a criação linguística opera através de mecanismos inconscientes sofisticados (condensação, deslocamento, sublimação), como analisado por Freud em A Interpretação dos Sonhos (Freud, 2019 [42]), e estabelece relações transferenciais complexas com os receptores. A linguagem poética, assim, mobiliza não apenas o consciente, mas camadas profundas da psique.


Da neurociência, aprendemos que o cérebro humano possui plasticidade suficiente para processar e criar elementos linguísticos radicalmente inovadores, ativando redes neurais associadas à criatividade e ao processamento não-literal. A pesquisa sobre a neuroplasticidade (Davidson; Lutz, 2008 [43]) e o processamento de linguagem figurada (Beeman; Bowden, 2000 [44]) sustenta a capacidade cerebral de se adaptar a novas convenções simbólicas.


Das teorias da informação, extraímos modelos para compreender como objetos ideais maximizam conteúdo informacional e funcionam como "ruído criativo" que renova sistemas comunicativos, desafiando a entropia semântica (Shannon, 1948 [45]; Kolmogorov 1965 [46]).


Das ciências cognitivas, obtemos evidências de que vocabulários autônomos podem emergir de processos conexionistas complexos e abrir possibilidades inéditas de cognição incorporada (Barsalou, 2008 [47]), onde o sentido não é abstrato, mas intrinsecamente ligado à experiência sensório-motora.


Esta convergência sugere que a proposta de vocabulários poéticos autônomos não constitui especulação estética isolada, mas responde a necessidades fundamentais da cognição humana – necessidade de inovação simbólica, expansão das capacidades expressivas e renovação contínua dos recursos linguísticos disponíveis.


12.2 Implicações para a Teoria da Literatura: Redefinindo Paradigmas


A possibilidade de objetos ideais poéticos exige revisão profunda de conceitos centrais da teoria literária tradicional:


  • Literariedade: Não mais definível como desvio da norma linguística, mas como criação de novas normas expressivas e constituição de novos mundos simbólicos.

  • Poeticidade: Não reduzível a reorganização de elementos preexistentes, mas capacidade de gerar elementos linguísticos inéditos e inaugurar modalidades de ser.

  • Interpretação: Não mais descoberta de sentidos ocultos, mas co-criação de convenções semânticas emergentes, em um processo hermenêutico ativo e participativo.

  • Tradição: Não apenas transmissão de formas herdadas, mas criação contínua de possibilidades expressivas novas, em um diálogo dinâmico entre o passado e o futuro.


12.3 Horizontes de Pesquisa: Rumo a uma Poética Experimental

12.3.1 Programa de Pesquisa Experimental


A validação empírica das hipóteses apresentadas exige programa de pesquisa que combine métodos de múltiplas disciplinas:


  • Experimentos neurológicos: Neuroimagem funcional durante criação e recepção de objetos ideais poéticos, comparando padrões de ativação com processamento de linguagem comum e figurada, buscando as bases neurais da inovação semântica.

  • Estudos psicolinguísticos: Análise dos processos cognitivos envolvidos na compreensão de vocabulários autônomos, medindo tempo de processamento, padrões de erro, estratégias interpretativas, e a emergência de novas associações mentais.

  • Pesquisa etnográfica: Observação participante de comunidades que criam e utilizam vocabulários poéticos específicos, documentando processos de transmissão cultural e evolução das convenções, bem como as dinâmicas sociais da adesão.

  • Modelagem computacional: Desenvolvimento de algoritmos capazes de gerar objetos ideais poéticos, testando hipóteses sobre os mecanismos subjacentes à criatividade linguística e a otimização de novas convenções semânticas.


12.3.2 Aplicações Terapêuticas e Educativas: A Linguagem como Ferramenta de Transformação


A criação de vocabulários poéticos pode ter aplicações terapêuticas importantes:


  • Terapia da linguagem: Pacientes com afasias ou dificuldades expressivas poderiam beneficiar-se da criação de objetos ideais personalizados, contornando limitações do vocabulário comum e explorando vias alternativas de expressão.

  • Educação criativa: O ensino de criação de objetos ideais pode desenvolver capacidades metacognitivas, consciência linguística e flexibilidade mental em estudantes, estimulando o pensamento divergente e a inovação.

  • Terapia psicológica: A criação colaborativa de vocabulários poéticos pode funcionar como técnica terapêutica, permitindo expressão de experiências traumáticas ou complexas através de mediações simbólicas específicas, oferecendo um espaço seguro para a reconfiguração do trauma.


12.4 Desafios e Limitações: A Complexidade do Inédito

12.4.1 Problema da Verificação Empírica: A Mensuração do Imensurável


Como verificar empiricamente a eficácia de objetos ideais que, por definição, não possuem critérios de validação externos? Este problema metodológico fundamental exige desenvolvimento de métricas específicas para avaliar "sucesso" estético – talvez baseadas em critérios neurológicos (ativação de redes criativas), psicológicos (satisfação expressiva) ou sociológicos (adoção comunitária). A natureza do objeto ideal poético resiste à quantificação, exigindo abordagens qualitativas e fenomenológicas.


12.4.2 Tensão entre Universalidade e Singularidade: O Dilema da Teoria


A pesquisa científica busca resultados universalizáveis, enquanto objetos ideais poéticos são, por natureza, singulares e irrepetíveis. Como conciliar esta tensão epistemológica? Talvez através de investigação não dos objetos ideais específicos, mas dos processos gerais de sua criação e recepção, ou através de uma "ciência das singularidades", que valorize o caso único como fonte de conhecimento.


12.5 Conclusão: A Linguagem Poética como Laboratório da Humanidade


A investigação interdisciplinar dos vocabulários poéticos autônomos revela que a linguagem poética funciona como laboratório privilegiado para exploração das capacidades criativas fundamentais da espécie humana. Neste laboratório, testam-se limites da plasticidade neuronal, da inovação simbólica, da comunicação intersubjetiva e da criação cultural.


Os objetos ideais poéticos representam não apenas recursos estéticos, mas instrumentos de investigação sobre a natureza da consciência, criatividade e comunicação humanas. Sua criação e estudo contribuem para nossa compreensão de questões centrais: Como emerge a novidade na cultura humana? Quais são os limites da inovação linguística? Como se relacionam criatividade individual e transmissão cultural?


A convergência interdisciplinar demonstrada nesta monografia sugere que a linguagem poética, longe de ser fenômeno marginal ou decorativo, constitui dimensão fundamental da experiência humana – espaço onde se manifestam e desenvolvem capacidades cognitivas, expressivas e criativas que definem nossa espécie.


O projeto de vocabulários poéticos autônomos representa assim não apenas horizonte da experimentação estética, mas contribuição para o projeto mais amplo de compreensão científica e filosófica da natureza humana. A poesia revela-se não como ornamento da linguagem, mas como laboratório da humanidade.


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