Dicionário Conceitual do Antropoceno: Vocabulário para a Experiência Ambiental Contemporânea Aprimorado (Parte 2)
- Sérgio Luiz de Matteo
- 12 de out.
- 8 min de leitura
Dano Sistêmico

Definição: Prejuízo que transcende seus efeitos imediatos e locais, propagando-se através de sistemas interconectados de forma não linear e frequentemente irreversível. Diferencia-se do "dano colateral" por sua natureza sistêmica e pela impossibilidade de contenção dentro de fronteiras específicas, afetando múltiplas esferas da vida e ecossistemas distantes e interligados.
Gênero: Masculino (M)
Perspectivas:
Ecologia de Sistemas: Analisa como a perturbação de um componente pode desencadear uma cascata de impactos em todo o sistema.
Economia Ecológica: Quantifica os custos invisíveis e as externalidades negativas que se espalham além do local de origem do dano.
Direito Ambiental Internacional: Desafia a limitação de responsabilidade a fronteiras nacionais, reconhecendo a natureza transfronteiriça dos danos ambientais.
Exemplo: O desmatamento da Amazônia constitui dano sistêmico porque altera padrões de chuva continentais, afeta a biodiversidade global, intensifica o aquecimento global e compromete a estabilidade climática planetária, impactando áreas muito além de suas fronteiras físicas.
Descolonização Ontológica

Definição: Processo de questionamento, subversão e transformação das categorias fundamentais (ser, natureza, pessoa, agência, tempo) impostas pela colonialidade do poder e do saber, recuperando e valorizando outras formas de compreender e relacionar-se com o mundo, especialmente aquelas advindas de cosmologias não-ocidentais e indígenas. Busca desconstruir a hegemonia da ontologia moderna que hierarquiza e objetifica.
Gênero: Feminino (F)
Perspectivas:
Estudos Pós-Coloniais: Analisa como o colonialismo não apenas dominou territórios e povos, mas também impôs modos específicos de ser e conhecer.
Antropologia Filosófica: Explora as diferentes formas pelas quais as culturas definem a realidade, a vida e a interrelação entre seres.
Ecologia Política: Vincula a dominação ontológica à exploração ambiental e social, mostrando como a visão ocidental da natureza como recurso justifica sua apropriação.
Exemplo: Movimentos indígenas promovem descolonização ontológica ao insistir que rios e montanhas são pessoas com direitos próprios, desafiando a ontologia moderna que os reduz a "recursos naturais" passíveis de exploração, e propondo uma relação de parentesco.
Dívida Carbônica Histórica

Definição: Um conceito que quantifica e politiza a responsabilidade desigual pelas crises climáticas. Refere-se à dívida acumulada pelos países industrializados, resultante de sua parcela histórica desproporcional nas emissões de gases de efeito estufa desde a Revolução Industrial. Coloca em xeque relações de poder globais, a injustiça ambiental e exige justiça climática e reparações para as nações e comunidades mais vulneráveis.
Gênero: Feminino (F)
Perspectivas:
Política Internacional/Economia Ambiental: Fundamenta demandas por financiamento climático, transferência de tecnologia e reparação dos países do Norte Global para os do Sul Global, reconhecendo responsabilidades passadas.
Sociologia/Justiça Ambiental: Expõe como os benefícios do desenvolvimento industrial foram concentrados em algumas regiões, enquanto os custos (enchentes, secas, elevação dos mares) são suportados de forma mais cruel pelas populações menos responsáveis e historicamente marginalizadas.
Ética Intergeracional: Argumenta pela responsabilidade das gerações presentes em pagar a dívida ecológica acumulada e garantir um futuro para as próximas gerações.
Exemplo: Uma ilha-nação como Tuvalu, que contribui com uma fração mínima das emissões globais, enfrenta o risco de desaparecer devido à elevação do nível do mar. Sua luta política é um apelo direto para que os maiores devedores da dívida carbônica histórica ajam e compensem, com investimentos em infraestrutura de adaptação e mitigação.
Dívida Ecológica

Definição: Um conceito que busca quantificar e responsabilizar países ou grupos humanos do Norte global (ou elites econômicas) pela exploração desproporcional dos recursos naturais e pela apropriação dos "sumidouros" ambientais (capacidade de absorção de poluição) de países e comunidades do Sul global, sem compensação adequada. Refere-se à herança histórica de degradação ambiental e às externalidades negativas impostas a populações mais vulneráveis, resultantes de modelos de desenvolvimento insustentáveis e padrões de consumo predatórios, e à demanda por restauração e reparação.
Gênero: Feminino (F)
Perspectivas:
Economia Ecológica: Contabiliza os custos ambientais não internalizados, a transferência de cargas e a apropriação desigual da capacidade de suporte da Terra.
Sociologia/Ciências Políticas: Analisa as relações de poder, o colonialismo extrativista e a injustiça ambiental global, identificando os beneficiários e os prejudicados.
Ética/Justiça: Questiona a distribuição desigual de benefícios e ônus ambientais, exigindo reparação, compensação e reconhecimento do direito à autodeterminação ambiental.
Exemplo: As emissões históricas de gases de efeito estufa por nações industrializadas, que contribuíram desproporcionalmente para as mudanças climáticas, impactando severamente pequenas ilhas-estado e comunidades costeiras do Sul global através do aumento do nível do mar e eventos climáticos extremos. A "dívida ecológica" implica que estas nações industrializadas têm uma responsabilidade histórica e moral de fornecer apoio financeiro e tecnológico para adaptação e mitigação às nações mais afetadas.
Ecoansiedade

Definição: Estado psicológico caracterizado por preocupação crônica, angústia, medo e tristeza relacionados às mudanças ambientais (como aquecimento global, perda de biodiversidade, desastres naturais) e à incerteza sobre o futuro ecológico do planeta. Pode manifestar-se através de sintomas físicos (insônia, palpitações), perturbações do sono, sensação de desamparo existencial e pessimismo em relação à capacidade humana de reverter a situação.
Gênero: Feminino (F)
Perspectivas:
Psicologia Ambiental: Investiga as respostas emocionais e cognitivas dos indivíduos e comunidades às ameaças ambientais.
Saúde Mental: Reconhece a ecoansiedade como uma condição que demanda atenção clínica e estratégias de enfrentamento.
Sociologia da Emoção: Analisa como as emoções relacionadas ao meio ambiente são mediadas por fatores sociais, culturais e políticos.
Exemplo: Estudantes universitários desenvolvem ecoansiedade ao estudar relatórios científicos sobre aquecimento global, experimentando um conflito entre a necessidade de agir e a sensação de insignificância individual diante da magnitude do problema, levando a um sentimento de paralisia.
Ecocídio

Definição: A destruição massiva e sistemática do meio ambiente, de tal magnitude que compromete a capacidade de um ecossistema se regenerar e sustentar a vida. O conceito propõe elevar a devastação ambiental ao patamar de crime internacional, similar a genocídio, visando responsabilizar indivíduos e corporações por atos que causam danos ambientais graves e de longo prazo. Isso implica reconhecer a "Terra" ou os "ecossistemas" como vítimas passíveis de serem lesadas e sujeitos de direitos.
Gênero: Masculino (M)
Perspectivas:
Direito/Judiciário: Desafia os marcos legais existentes, propondo uma nova categoria de crime contra a paz e a segurança planetária, com a finalidade de punir e prevenir a destruição ecológica.
Ética Ambiental/Filosofia: Amplia a consideração moral para além dos humanos, buscando justiça para o mundo não-humano e as futuras gerações, e um reconhecimento intrínseco do valor da natureza.
Ecologia: Fornece a base científica para quantificar e qualificar a extensão dos danos, identificando limiares de irreversibilidade e os impactos sobre a biodiversidade e os serviços ecossistêmicos.
Exemplo: O vazamento de óleo de uma plataforma petrolífera que devasta extensas áreas costeiras, aniquilando ecossistemas marinhos, manguezais e a vida selvagem associada, impactando irreversivelmente a subsistência de comunidades pesqueiras. Se reconhecido como ecocídio, os responsáveis não seriam apenas multados, mas poderiam ser processados criminalmente por um tribunal internacional, evidenciando que a exploração irresponsável tem consequências que transcendem fronteiras e gerações.
Entrelaçamento Biosférico

Definição: Reconhecimento de que todos os sistemas vivos (e muitos não-vivos) estão fundamentalmente interconectados através de fluxos contínuos e dinâmicos de matéria, energia e informação. Transcende as divisões tradicionais entre espécies, ecossistemas e escalas temporais, revelando uma profunda teia de interdependência que sustenta a vida no planeta.
Gênero: Masculino (M)
Perspectivas:
Biologia/Ecologia: Estuda os ciclos biogeoquímicos, as cadeias alimentares e as relações interespecíficas que formam a biosfera.
Filosofia da Natureza: Aborda a interconectividade como uma característica ontológica da vida, desafiando visões fragmentadas do mundo.
Teoria de Sistemas: Utiliza modelos para compreender como os diferentes componentes da biosfera interagem e se influenciam mutuamente.
Exemplo: O ciclo do carbono demonstra entrelaçamento biosférico ao conectar a respiração humana (liberação de CO2) com a fotossíntese das plantas (absorção de CO2 e liberação de O2), a decomposição microbiana no solo e nos oceanos, e os padrões climáticos globais, revelando uma intrincada dança de trocas que permeia toda a vida.
Epistemologia do Chão

Definição: Forma de conhecimento que emerge do contato direto, prolongado e sensorial com territórios específicos, valorizando saberes corporais, sensoriais e relacionais que se desenvolvem através da habitação, do cuidado, da prática e da observação atenta de lugares concretos. Contrasta com a epistemologia hegemônica ocidental, que tende a abstrair e universalizar o conhecimento.
Gênero: Feminino (F)
Perspectivas:
Estudos Indígenas/Antropologia do Conhecimento: Resgata e valoriza os saberes tradicionais e locais, mostrando sua relevância para a sustentabilidade.
Geografia Humana/Fenomenologia: Explora a relação entre o corpo, o lugar e a produção de significado, evidenciando como a experiência molda o conhecimento.
Educação Ambiental: Propõe pedagogias que promovem a imersão e a experiência direta com o ambiente como forma de aprendizagem.
Exemplo: Benzedeiras e rezadeiras desenvolvem epistemologia do chão ao acumular conhecimentos sobre plantas medicinais locais através de décadas de observação, experimentação, transmissão oral e interação profunda com a floresta ou o campo em seus territórios, compreendendo as propriedades das plantas em seu contexto ecológico.
Escala Corporal do Trauma Ecológico

Definição: Refere-se à manifestação do trauma ambiental e das mudanças climáticas não apenas em nível psíquico (solastalgia, ecoansiedade), social ou planetário, mas também em um plano profundamente encarnado e biológico. Reconhece que a poluição, a degradação ambiental e os eventos climáticos extremos têm impactos diretos e viscerais nos corpos humanos e não-humanos, alterando a saúde, o bem-estar e a capacidade de habitar o mundo. Este conceito busca resgatar a materialidade da experiência ambiental, evidenciando como a crise é vivida na carne e no sistema nervoso, muitas vezes sem a possibilidade de plena conscientização ou processamento cognitivo imediato.
Gênero: Feminino (F)
Perspectivas:
Neurociência/Psicologia: Aborda os impactos neurobiológicos do estresse crônico, da toxicidade ambiental e do trauma coletivo, analisando como o corpo registra a experiência.
Filosofia do Corpo/Fenomenologia: Explora como o corpo é o locus primário da experiência e como a degradação ambiental afeta nossa própria existência encarnada e percepção do mundo.
Medicina Ambiental/Saúde Pública: Investiga as correlações entre poluentes, mudanças climáticas e doenças crônicas ou agudas, bem como as desigualdades na exposição a esses riscos.
Exemplo: Crianças em comunidades expostas à poluição industrial sofrendo de asma crônica ou problemas de desenvolvimento neurológico. Ou a experiência de sobreviventes de desastres climáticos extremos (como grandes inundações ou incêndios florestais) que, além da perda material e do luto, enfrentam síndromes de estresse pós-traumático complexas e dores físicas persistentes. Nestes casos, o "dano colateral" não é apenas econômico ou paisagístico, mas se inscreve diretamente nos corpos.
Espectralidade Ecológica

Definição: Presença fantasmática de ecossistemas, espécies e paisagens extintas ou ameaçadas que assombra a experiência contemporânea. Refere-se à forma como a perda ambiental, mesmo quando não fisicamente presente, permanece psicologicamente, culturalmente e materialmente ativa, evocando memórias de um passado ecológico perdido ou a iminência de uma perda futura, criando um sentimento de assombro.
Gênero: Feminino (F)
Perspectivas:
Filosofia (Hauntologia): Inspira-se no conceito de Derrida para explorar a persistência do ausente e a forma como o passado (ou um futuro que não será) assombra o presente.
Psicologia Ambiental: Aborda o impacto da perda invisível na psique humana e a dificuldade de lidar com aquilo que está "quase lá" ou que "esteve lá".
Estudos Culturais/Literatura: Analisa como a arte e a narrativa representam essa presença ausente, evocando o luto e a memória de mundos perdidos.
Exemplo: Moradores de áreas urbanas sentem espectralidade ecológica ao caminhar por ruas onde antes existiam rios canalizados, mantendo uma memória corporal de paisagens que não vivenciaram diretamente, mas que são parte da história do lugar, ou ao ver fotos de animais extintos.
Etnobotânica Urbana

Definição: Estudo das relações entre pessoas e plantas em contextos urbanos, incluindo usos medicinais, alimentares, rituais e ornamentais de espécies que resistem, adaptam-se ou são introduzidas em ambientes citadinos. Analisa como os conhecimentos tradicionais e culturais sobre as plantas persistem, se transformam e são recriados na complexidade do espaço urbano.
Gênero: Feminino (F)
Perspectivas:
Antropologia Urbana: Investiga como as comunidades urbanas mantêm ou reinventam suas relações com o mundo vegetal.
Ecologia Urbana: Estuda a flora urbana, as interações entre plantas e humanos, e o papel da vegetação na resiliência das cidades.
Botânica/Farmacologia: Analisa as propriedades das plantas utilizadas e a persistência de saberes tradicionais.
Exemplo: Imigrantes que cultivam plantas de seus países de origem em quintais urbanos ou em vasos, praticam etnobotânica urbana ao manter vínculos culturais e medicinais com suas tradições através da jardinagem, transformando o espaço urbano em um lugar de memória e resistência cultural.

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