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Ensaio - A Inteligência Artificial e o Futuro da Conexão Artística: Quando Máquinas Desafiam a Autoria Humana

Introdução


A arte gerada por inteligência artificial irrompeu no cenário cultural em 2018 quando Portrait of Edmond de Belamy, criado por um algoritmo, foi leiloado por US$ 432.500 na Christie's [1].


O quadro, criado pelo coletivo de arte Obvious usando uma rede adversária generativa (GAN) e um banco de dados de 15.000 retratos pintados entre os séculos 14 e 20, foi vendido em 25 de outubro de 2018, superando em muito sua estimativa inicial de US$10.000. O fato foi amplamente divulgado como um marco histórico, sendo a primeira obra de arte gerada por IA vendida em uma grande casa de leilões [1]. Esse marco histórico desencadeou um debate urgente: ferramentas como DALL-E, MidJourney e ChatGPT produzem obras indistinguíveis de criações humanas, mas será que podem substituir não apenas a técnica, mas a conexão emocional que nutrimos com artistas?


O paradoxo tornou-se ainda mais agudo em 2023, quando Heart on My Sleeve – música composta por IA imitando Drake e The Weeknd – viralizou. A música foi criada por Ghostwriter977, um usuário do TikTok, usando IA para simular as vozes de Drake e The Weeknd, e foi lançada em 4 de abril de 2023 em plataformas como Spotify, Apple Music e YouTube. Ela viralizou rapidamente, acumulando milhões de visualizações em uma semana. No entanto, foi removida em 17 de abril de 2023 devido a reclamações de direitos autorais da Universal Music Group (UMG), a gravadora de Drake [2,3]. O público consumiu avidamente a obra, mas a controvérsia girou em torno de uma ausência inquietante: a falta de um "rosto humano" por trás da criação.


Este ensaio investiga como a autoria desmaterializada desafia nossas noções mais profundas de arte e examina se a ausência do humano poderá reconfigurar radicalmente nossa relação com o fenômeno artístico.


Fundamentos Teóricos: Autoria, Aura e o Fantasma do Criador


A Morte do Autor Revisitada


Roland Barthes, em seu ensaio A Morte do Autor (1967) [4], argumentou que o significado de uma obra não deve ser determinado pelas intenções do autor, mas sim pela interpretação do leitor. Isso desloca o foco da autoria para a recepção, enfatizando a liberdade do leitor. Mas a IA radicaliza esse conceito: quem é o verdadeiro autor de uma pintura do DALL-E? O programador do algoritmo, o usuário que inseriu o prompt ou a própria máquina? Essa ambiguidade desestabiliza o mito do "gênio criador", pilar da cultura ocidental desde o Renascimento.


Retrato de um cavalheiro distinto do século XIX, executado em estilo de pintura a óleo gerada por IA, pinceladas algorítmicas visíveis, paleta de cores suaves, moldura clássica
Retrato de um cavalheiro distinto do século XIX, executado em estilo de pintura a óleo gerada por IA, pinceladas algorítmicas visíveis, paleta de cores suaves, moldura clássica

A Perda da Aura


Em A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica (1936), Walter Benjamin argumentou que a reprodutibilidade técnica, como fotografia ou cinema, diminui a "aura" de uma obra de arte, que é sua presença única, decorrente da autenticidade e do contexto histórico de sua criação. A IA, ao gerar arte diretamente, vai além da mera reprodução, criando obras que nunca tiveram um "original" humano, eliminando completamente a aura no sentido benjaminiano [5].


Adorno e Horkheimer, em Dialética do Esclarecimento (1947) [6], criticaram a indústria cultural por commodificar a arte, reduzindo sua capacidade de resistência. Eles argumentaram que a arte autêntica deve refletir a experiência humana, incluindo sofrimento e resistência, para manter sua autonomia e criticidade. A arte gerada por IA, como imagens do DALL-E ou músicas do ChatGPT, além de não possuir um "original" humano, carece dos traços de experiência, emoção ou intenção que caracterizam a criação humana. Isso elimina a aura, como mencionado, e também levanta questões sobre a autenticidade e o valor cultural dessas obras, alinhando-se com a ideia de Adorno e Horkheimer de que elas não carregam marcas de sofrimento, amor ou rebeldia.


Estudos recentemente publicados em Frontiers in Psychology (2025) comprovam essa lacuna: ao analisar ressonâncias magnéticas, observou-se que obras humanas ativam intensamente o córtex pré-frontal medial – região cerebral associada à empatia –, enquanto peças de IA estimulam principalmente o córtex visual [7, 8].


Representação abstrata etérea da aura da arte, raios de luz suaves e brilhantes, camadas translúcidas sugerindo o amanhecer, indícios de texto manuscrito, iluminação de alta chave
Representação abstrata etérea da aura da arte, raios de luz suaves e brilhantes, camadas translúcidas sugerindo o amanhecer, indícios de texto manuscrito, iluminação de alta chave

Capitalismo Digital e Autoria Fantasma


Em The Field of Cultural Production (1993) [9], Pierre Bourdieu descreveu o campo cultural como um espaço onde agentes (artistas, críticos, instituições) competem por capital simbólico e posições de poder. Ele argumentou que a legitimidade artística é determinada por lutas dentro desse campo, onde o poder simbólico é tão importante quanto o econômico. A entrada de corporações como OpenAI e Google, que controlam algoritmos e monetizam obras geradas por IA, é uma aplicação contemporânea dessa teoria. Essas corporações introduzem novos atores no campo, alterando o equilíbrio de poder e diluindo a noção tradicional de autoria, pois a criação artística passa a envolver engenheiros, usuários e máquinas.


A Conexão Emocional com Obras Audiovisuais Criadas por IA: Estudo de Casos


IA na Música


A IA passou de um papel secundário na produção musical para se tornar um agente criativo central. Inicialmente usada para tarefas técnicas, como mixagem e masterização, a IA agora compõe músicas completas. Um exemplo marcante é a banda The Velvet Sundown, que, em 2025, alcançou mais de um milhão de ouvintes mensais no Spotify sem inicialmente revelar que era totalmente gerada por IA, incluindo os próprios “músicos” [10]. Esse caso ilustra o potencial da IA para criar música convincente, mas também levanta questões sobre transparência e autenticidade.


Pesquisas, como um estudo publicado na ScienceDirect (2022), investigaram como o público avalia a música composta por IA. Os resultados indicaram que a autonomia da IA ou seus traços humanoides não influenciam significativamente sua aceitação como “músico”. No entanto, quando a IA é antropomorfizada – ou seja, apresentada com características humanas – a apreciação de sua música tende a aumentar [11].


Além disso, a IA está sendo integrada em instrumentos musicais “inteligentes” que reconhecem emoções no sinal musical, como pianos e guitarras elétricas que identificam sentimentos como felicidade, tristeza ou agressividade. Um estudo realizado em 2024 com 22 músicos demonstrou que esses instrumentos podem abrir caminho para novos formatos artísticos, mas ainda enfrentam limitações na replicação da profundidade emocional humana [12].

Entidade futurista de IA compondo música, notas musicais holográficas flutuantes, formas de onda neon, linhas de partitura semelhantes a circuitos, fundo escuro de estúdio, iluminação cinematográfica
Entidade futurista de IA compondo música, notas musicais holográficas flutuantes, formas de onda neon, linhas de partitura semelhantes a circuitos, fundo escuro de estúdio, iluminação cinematográfica

IA na Poesia


Na poesia, a IA tem demonstrado uma capacidade impressionante de criar versos que rivalizam com os de poetas humanos. Um estudo recente da Psychology Today (2024) revelou que participantes não conseguiram distinguir poemas gerados por IA de obras de poetas consagrados, como Sylvia Plath e Emily Dickinson. Surpreendentemente, os poemas de IA frequentemente receberam notas mais altas em ritmo, beleza e clareza emocional [13]. Essa acessibilidade e clareza alinham-se às necessidades modernas de conexão em um mundo fragmentado, mas a falta de complexidade pode limitar sua ressonância a longo prazo.

Visual surreal de poesia de IA, versos flutuantes em tipografia brilhante, respingos de tinta fundindo-se em código digital, fundo com gradiente pastel
Visual surreal de poesia de IA, versos flutuantes em tipografia brilhante, respingos de tinta fundindo-se em código digital, fundo com gradiente pastel

IA nas Artes Plásticas


A inteligência artificial também está revolucionando as artes plásticas, permitindo a criação de obras visuais que desafiam as fronteiras da criatividade tradicional. Ferramentas como DALL-E, Midjourney e Stable Diffusion permitem que usuários gerem imagens complexas e inovadoras a partir de simples prompts de texto, democratizando o processo criativo.

Um exemplo notável é o mangá Cyberpunk: Momotaro, cujas ilustrações foram inteiramente criadas pelo Midjourney. O que normalmente levaria um ano para ser produzido foi completado em apenas seis semanas, demonstrando o potencial da IA para acelerar o processo criativo. No entanto, esse avanço não está isento de polêmicas. A utilização de obras de artistas humanos para treinar esses modelos de IA sem permissão tem levantado questões éticas e legais significativas [14].


Outro caso que gerou controvérsia foi a vitória de Jason M. Allen em um concurso de arte com a obra Teatro de Ópera Espacial, criada com o Midjourney. Apesar de ter vencido, a revelação de que a obra foi gerada por IA provocou debates acalorados sobre a legitimidade de tal premiação em um contexto tradicionalmente reservado a artistas humanos [15].


Além disso, a Netflix lançou um curta de anime em que os planos de fundo foram totalmente gerados por IA, embora validados por humanos posteriormente. Esse projeto foi criticado por utilizar artes disponíveis na internet sem o devido crédito ou permissão, levantando preocupações sobre a exploração de trabalhos artísticos preexistentes [16].

Pintura digital futurista, formas abstratas vibrantes, estruturas cristalinas, padrões algorítmicos, composição dinâmica, alto contraste de cores
Pintura digital futurista, formas abstratas vibrantes, estruturas cristalinas, padrões algorítmicos, composição dinâmica, alto contraste de cores

Contrapontos: Como a IA Pode Reforçar a Conexão Humana


A IA como Ferramenta de Ampliação Criativa


Refik Anadol é um artista reconhecido por utilizar IA para criar instalações visuais imersivas. Sua obra Machine Hallucinations: Nature Dreams (2021), exibida na König Galerie em Berlim, utiliza mais de 300 milhões de imagens de natureza processadas por um algoritmo de IA generativa (GAN) para criar esculturas de dados dinâmicas. A instalação foi descrita como uma "escultura/pintura digital" que explora a interseção entre consciência humana, arquivos de natureza e inteligência de máquina. Anadol é frequentemente chamado de "visionário tecnológico" devido à sua abordagem pioneira no uso de IA e NFTs (tokens não fungíveis) no mundo da arte digital [17, 18, 19].

Instalação de arte de visualização de dados imersiva, partículas girando em resposta à música, formas luminosas semelhantes a nuvens, cenário de galeria escuro
Instalação de arte de visualização de dados imersiva, partículas girando em resposta à música, formas luminosas semelhantes a nuvens, cenário de galeria escuro

A IA como Ferramenta de Coautoria


Holly Herndon, uma artista musical baseada em Berlim, desenvolveu Holly+, um modelo de IA que permite aos usuários criar música utilizando sua voz. Lançado em colaboração com o Herndon Dryhurst Studio, Never Before Heard Sounds e Voctro Labs, Holly+ foi apresentado no festival Sónar em 2021. O projeto utiliza redes neurais treinadas com gravações vocais de Herndon e um coral berlinense, permitindo a geração de música em tempo real ou a partir de partituras enviadas pelos usuários [20, 21].


Em uma entrevista à NPR em 2022, Herndon afirmou que a IA pode "aumentar o poder e a arte da voz", destacando sua crença na colaboração entre humanos e máquinas [22]. Além disso, Herndon e seu parceiro, Mat Dryhurst, lançaram o projeto Spawning em 2022, que permite aos artistas optar por incluir ou excluir suas obras de conjuntos de dados de treinamento de IA, reforçando a ética colaborativa [20].


Lançado em 2016, Sunspring é um curta-metragem de ficção científica escrito inteiramente por uma IA chamada Benjamin, uma rede neural recorrente de memória de longo e curto prazo (LSTM), desenvolvida pelo cineasta Oscar Sharp e pelo pesquisador de IA Ross Goodwin. Produzido para o desafio de 48 horas do festival Sci-Fi-London, o filme apresenta Thomas Middleditch, Elisabeth Grey e Humphrey Ker em um enredo futurista envolvendo um triângulo amoroso. O roteiro, embora muitas vezes incoerente, foi transformado em um filme intrigante pelos esforços humanos na direção e atuação, ganhando notoriedade por sua "estranheza poética" [23, 24, 25].


Narrativas Alternativas: O Mito do Criador-Algoritmo


PromptBase é uma plataforma que funciona como um mercado para prompts de IA, permitindo que usuários comprem e vendam prompts para ferramentas como Midjourney, Stable Diffusion e ChatGPT. A plataforma é descrita como contendo mais de 200.000 prompts criados por especialistas, ajudando a gerar saídas de alta qualidade [26]. Há quem defenda a ideia de os "prompters" como novos artistas, pois criar prompts eficazes requer habilidade criativa. No entanto, a autoria das obras geradas por IA permanece controversa, já que o resultado final depende do algoritmo, não apenas do prompt [25].


Daito Manabe, um artista japonês e cofundador da Rhizomatiks, utiliza algoritmos em performances ao vivo, frequentemente integrando dados em tempo real, como atividade cerebral ou movimentos corporais, para criar experiências audiovisuais. Sua performance Dissonant Imaginary (2022), em colaboração com o Kamitani Lab, utiliza dados de ressonância magnética para gerar imagens visuais baseadas na atividade cerebral, explorando a relação entre som e imaginação, mas o foco permanece na presença humana do intérprete [27, 28]. Manabe também trabalhou com artistas como Björk e Ryuichi Sakamoto, utilizando projeções mapeadas e realidade aumentada em performances ao vivo [29].


O Futuro da Conexão entre IA e Humanos: Entre a Desmaterialização e o Neo-Romantismo


A Ascensão do "Artista Curador"


Em um mundo pós-IA, o artista pode se reinventar como curador de algoritmos, selecionando e editando obras geradas por máquinas.


A ideia de artistas como curadores de arte gerada por IA é válida e está sendo explorada em diversos contextos. Por exemplo, o Nasher Museum of Art da Duke University realizou a exposição Act As If You Are A Curator: An AI-Generated Exhibition (9 de setembro de 2023 a 18 de fevereiro de 2024), utilizando o ChatGPT da OpenAI para planejar uma exposição. Isso demonstra como a IA pode auxiliar na curadoria, com humanos guiando a seleção e contextualização das obras [30].


A plataforma Runway ML é uma ferramenta robusta para criação e edição de vídeos gerados por IA. Ela oferece funcionalidades como geração de vídeos a partir de texto ou imagens, remoção de fundo, sincronização de lábios e criação de texturas 3D. Um exemplo prático é o relato de um cineasta que usou Runway ML para gerar um filme em 48 horas, combinando geração de imagens e edição para criar um animatic [31]. Isso confirma que a curadoria de conteúdo gerado por IA é um ato criativo.


Outros exemplos incluem o projeto The Next Biennial Should Be Curated by a Machine (2021), uma colaboração entre o Whitney Museum of American Art e a Liverpool Biennial, onde o software B3(NSCAM) gerou 64 conceitos curatoriais a partir de bancos de dados, com humanos refinando os resultados [32, 33].

Infográfico vetorial de um algoritmo de IA em funcionamento, silhueta humana interagindo com fluxos de dados, nós de rede, estilo minimalista, esquema de cores azul e branco
Infográfico vetorial de um algoritmo de IA em funcionamento, silhueta humana interagindo com fluxos de dados, nós de rede, estilo minimalista, esquema de cores azul e branco

Neo-Romantismo: A Nostalgia do Humano


A perfeição técnica das criações de IA, como imagens geradas por Midjourney ou músicas por algoritmos, pode destacar a valorização das imperfeições humanas, que carregam emoção e história. A IA pode intensificar o desejo por obras com "marcas de luta", como esculturas manuais ou diários íntimos, abrindo espaço a movimentos como o Slow Art e Craft Revival, que rejeitam a produção em massa, valorizando imperfeições humanas.


O Slow Art foi um movimento iniciado em 2008 por Phil Terry com o Slow Art Day, com o intuito de incentivar os visitantes de museus a passarem mais tempo apreciando obras de arte, em vez de percorrer exposições rapidamente. Estudos mostram que o tempo médio de observação de uma obra de arte é inferior a 30 segundos (28,63 segundos no Art Institute of Chicago, 2017), e o Slow Art busca combater essa tendência, promovendo uma conexão mais profunda com a arte [34]. O movimento é parte de uma tendência mais ampla de "lentidão", inspirada pelo livro In Praise of Slow de Carl Honoré (2004), que defende fazer as coisas no ritmo certo [35].


Relacionado ao movimento Arts and Crafts do século XIX, liderado por figuras como William Morris e John Ruskin, o Craft Revival do século XX e XXI valoriza o artesanato manual em resposta à produção em massa. Desde os anos 1950, o movimento ganhou força, com artesãos criando objetos únicos que combinam estética e funcionalidade. Hoje, a internet facilita a disseminação de produtos artesanais, com plataformas como Etsy conectando artesãos a consumidores globais [36, 37].


A IA como Espelho Cultural


A variação cultural na aceitação da IA reflete diferenças em valores sociais e históricos. Na Coreia do Sul, a rápida adoção de tecnologia no entretenimento, como o uso de hologramas no K-pop, pode facilitar a integração da IA. Um estudo da Statista (2023) indica que o K-pop tem uma aceitação global, com a música sendo um fator chave para sua popularidade, o que pode facilitar a aceitação da IA [38, 39]. Além disso, uma pesquisa da KPMG (2023) mostrou que 98% dos sul-coreanos conhecem IA, sugerindo uma familiaridade com a tecnologia [40].


No Brasil, a forte tradição cultural em gêneros como samba, pagode, sertanejo, rap e bossa nova, que valorizam a expressão humana, pode gerar resistência à IA na música.


Considerações Finais: O Paradoxo da Autoria na Era Algorítmica


A inteligência artificial desenha um horizonte ambíguo para a conexão artística: enquanto dissolve fronteiras criativas, expõe a natureza irredutível do vínculo humano com a arte. O caso de Portrait of Edmond de Belamy (2018) inaugurou uma era de autoria fantasmagórica, onde algoritmos assinam obras, mas a reação ao fenômeno Heart on My Sleeve (2023) revelou um paradoxo: o público consome avidamente criações algorítmicas, mas rejeita seu vazio narrativo. Esta tensão entre fascínio técnico e carência emocional sintetiza o cerne do dilema contemporâneo.


A Crise da Aura: Dados, Neurociência e o Inumano


Os estudos de neuroimagem publicados na Frontiers in Psychology (2025) comprovam o que Walter Benjamin intuía: obras humanas ativam circuitos de empatia (córtex pré-frontal medial), enquanto peças de IA estimulam apenas o reconhecimento visual. Essa desconexão neurobiológica explica por que projetos como The Velvet Sundown – banda 100% algorítmica com 1 milhão de ouvintes mensais – geram admiração técnica, mas não devoção. A aceitação aumenta quando a IA é antropomorfizada, como na poesia que imita Plath, mas mesmo os versos "perfeitos" falham em replicar o rastro da experiência humana que transforma Sylvia Plath em mito.


Contradições Criativas: Quando a IA Fortalece o Humano


Os casos de Refik Anadol e Holly Herndon demonstram que a IA pode ser ferramenta de ampliação simbólica, não substituição: i) Anadol transforma 300 milhões de imagens em esculturas de dados, mas seu valor emana da narrativa humana de "pioneiro tecnológico"; ii) Holly+ permite coautoria musical com a voz de Herndon, porém seu projeto Spawning (2022) defende o consentimento ético no treino de algoritmos, reforçando a agência humana.


Esses exemplos confirmam o argumento de Bourdieu: a IA é um novo agente no campo cultural, mas o capital simbólico permanece atrelado à figura do artista.


Batalhas Éticas e o Neo-Romantismo


A polêmica do mangá Cyberpunk: Momotaro (gerado em 6 semanas via Midjourney) e a vitória de Jason M. Allen no Colorado State Fair com Teatro de Ópera Espacial expõem um conflito irreconciliável: i) A aceleração produtiva desestabiliza mercados artísticos; ii) A apropriação não consentida de estilos em bancos de treino viola direitos autorais;

A resposta surge em movimentos como o Slow Art – que defende a contemplação lenta – e o Craft Revival, onde plataformas como Etsy valorizam falhas manuais como marcas de autenticidade.


O Futuro: Curadoria, Cultura e os Novos Mitos


A curadoria algorítmica, exemplificada pelo projeto The Next Biennial Should Be Curated by a Machine, sinaliza uma mudança de paradigma: o artista torna-se xamã de códigos, selecionando e ritualizando saídas de IA. Contudo, a aceitação varia conforme o terroir cultural: na Coreia do Sul, onde hologramas de idols do K-pop normalizam o pós-humano, é mais fácil a aceitação da IA na música; no Brasil, tradições como samba e literatura de cordel resistirão à desmaterialização por sua raiz corpórea.


A Última Trincheira Humana


A IA não eliminará o culto ao artista; irá reconfigurá-la. Como alertavam Horkheimer e Adorno (1947) [6], a arte é último reduto de resistência quando carrega "marcas de sofrimento e rebeldia" – algo inatingível para algoritmos. As preocupações de Vilém Fluser ecoam com urgência renovada: a tecnologia nos obriga a repensar o que é humano [41]. Nesse repensar, descobrimos que a conexão artística não é sobre perfeição, mas sobre presença: a mão que treme ao esculpir, a voz que quebra ao cantar, a biografia que transforma tinta em sangue. Enquanto buscarmos espelhos de nossa condição – frágil, imperfeita e mortal –, o artista permanecerá indispensável. A grande obra da IA talvez seja revelar que, no fim, só nos importa o que nos torna desesperadamente humanos.


Cena surreal de um pintor humano entregando um pincel a um robô, estúdio dividido entre o clássico e o futurista, iluminação em claro-escuro (chiaroscuro)
Cena surreal de um pintor humano entregando um pincel a um robô, estúdio dividido entre o clássico e o futurista, iluminação em claro-escuro (chiaroscuro)

Referências


  1. Artnet (2018): The First AI-Generated Portrait Ever Sold at Auction Shatters Expectations, Fetching $432,500—43 Times Its Estimate. Disponível em: https://news.artnet.com/market/first-ever-artificial-intelligence-portrait-painting-sells-at-christies-1379902

  2. The New York Times (2023): An A.I. Hit of Fake ‘Drake’ and ‘The Weeknd’ Rattles the Music World. Disponível em: https://www.nytimes.com/2023/04/19/arts/music/ai-drake-the-weeknd-fake.html

  3. CNN (2023): The viral new ‘Drake’ and ‘Weeknd’ song is not what it seems. Disponível em: https://edition.cnn.com/2023/04/19/tech/heart-on-sleeve-ai-drake-weeknd/index.html

  4. Barthes, R. (1967). A Morte do Autor. Saraiva, 2004.

  5. Benjamin, W. (1936). A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/benjamin/1936/mes/obra-arte.htm

  6. Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1947). Dialética do Esclarecimento. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/adorno/1947/06/dialetica_esclarecimento.pdf

  7. Frontiers in Psychology (2025). Human perception of art in the age of artificial intelligence. Disponível em: https://www.frontiersin.org/journals/psychology/articles/10.3389/fpsyg.2024.1497469/full

  8. Frontiers in Psychology (2025). Human creativity versus artificial intelligence: source attribution, observer attitudes, and eye movements while viewing visual art. Disponível em: https://www.frontiersin.org/journals/psychology/articles/10.3389/fpsyg.2025.1509974/full

  9. Bourdieu, P. (1993). The Field of Cultural Production. Columbia University Press.

  10. Forbes (2025): Is That Even A Real Band? How AI Created A Viral Music Sensation. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/michaelashley/2025/07/14/is-that-even-a-real-band-how-ai-created-a-viral-music-sensation/

  11. Science Direct (2022): Human, I wrote a song for you: An experiment testing the influence of machines’ attributes on the AI-composed music evaluation. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0747563222000619

  12. Science Direct (2024): Musician-AI partnership mediated by emotionally-aware smart musical instruments. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S107158192400123X

  13. Psicology Today (2024): When Good Becomes Too Good: The Curious Case of AI Poetry. Disponível em: https://www.psychologytoday.com/us/blog/the-digital-self/202411/when-good-becomes-too-good-the-curious-case-of-ai-poetry

  14. Hardware.com.br (2023): Esse mangá foi criado por inteligência artificial. Disponível em: https://www.hardware.com.br/noticias/2023-01/manga-criado-inteligencia-artificial.html

  15. BBC News Brasil (2022): 'Arte está morta': o polêmico boom de imagens geradas por inteligência artificial. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62949698

  16. Jovem Nerd (2023): Anime da Netflix gera polêmica por usar inteligência artificial. Disponível em: https://jovemnerd.com.br/nerdbunker/netflix-anime-usa-inteligencia-artificial

  17. Intramuros Magazine (2022): Refik Anadol: à quoi rêve une machine? Disponível em: https://www.intramuros.fr/blog/refik-anadol-a-quoi-reve-une-machine-intramuros

  18. Refik Anadol's website (2021): Machine Hallucinations — Nature Dreams. Disponível em: https://refikanadol.com/works/machine-hallucinations-nature-dreams/

  19. Centre Pompidou-Metz (2021): Refik Anadol: Machine Hallucinations. Rêves de nature. Disponível em: https://www.centrepompidou-metz.fr/fr/programmation/exposition/refik-anadol

  20. Sounding Future (2024): Holly+, Holly Herndon's digital AI voice twin. Disponível em: https://www.soundingfuture.com/en/article/holly-holly-herndons-digital-ai-voice-twin

  21. Ars Electronica (2022): Holly+, Holly Herndon (UM), Mathew Dryhurst, Herndon Dryhurst Studio. Disponível em: https://ars.electronica.art/planetb/en/holly-plus/

  22. NPR.org (2022): Holly Herndon: How AI can transform your voice. Disponível em: https://www.npr.org/2022/08/26/1119220726/holly-herndon-how-ai-can-transform-your-voice

  23. IMDb (2016): Sunspring. Disponível em: https://www.imdb.com/title/tt5794766/

  24. Ars Technica (2021). Movie written by algorithm turns out to be hilarious and intense. Disponível em: https://arstechnica.com/gaming/2021/05/an-ai-wrote-this-movie-and-its-strangely-moving/

  25. Digital Trends (2016): ‘Sunspring’ is an absurd sci-fi short film written by AI, starring Thomas Middleditch. Disponível em: https://www.digitaltrends.com/cool-tech/sunspring-ai-film-middleditch

  26. PromptBase website (2025). Disponível em: https://promptbase.com/

  27. Daito Manabe's portfolio (2025). Disponível em: https://daitomanabe.myportfolio.com/

  28. LEV Festival (2022): Daito Manabe + Kamitani Lab: Dissonant Imaginary Live Av. Disponível em: https://levfestival.com/22/en/lev-madrid/daito-manabe-kamitani-lab-dissonant-imaginary-live-av/

  29. Friends of Friends (2017): Daito Manabe on choreographing equations and making use of deep brain data. Disponível em: https://www.friendsoffriends.com/art/daito-manabe-on-choreographing-equations-and-making-use-of-deep-brain-data/

  30. Nasher Museum of Art (2024): Act as if you are a curator. Disponível em: https://nasher.duke.edu/exhibitions/act-as-if-you-are-a-curator-an-ai-generated-exhibition/

  31. Runway ML: Runway ML. Disponível em: https://runwayml.com/

  32. DailyArt Magazine (2021): AI and the Art of Curating. Disponível em: https://www.dailyartmagazine.com/a-curating/

  33. WIRED (2022): AI Art Is Challenging the Boundaries of Curation. Disponível em: https://www.wired.com/story/dalle-art-curation-artificial-intelligence/

  34. ARTDEX (2020). Slow Art Movement. Disponível em: https://www.artdex.com/slow-art-movement-how-the-art-world-relearns-art-appreciation

  35. 35. Tate Etc. (2019) Slow Art in an Age of Speed. Disponível em: https://www.tate.org.uk/tate-etc/issue-46-summer-2019/slow-art-take-time-jonathan-p-watts

  36. EBSCO Research Starters (2022): Arts and Crafts Revival. Disponível em: https://www.ebsco.com/research-starters/arts-and-entertainment/arts-and-crafts-revival

  37. Cosimo.art (2023): Revival of Traditional Crafts: Modern Artistry Based on Time-Honoured Techniques. Disponível em: https://cosimo.art/blog/traditional-crafts-revival/

  38. Music Business Worldwide (2025): South Korea’s Largest Music Copyright Collective. Disponível em: https://www.musicbusinessworldwide.com/south-koreas-largest-music-copyright-collective-just-banned-registration-of-songs-created-with-ai/

  39. Statista (2025): Music Industry in South Korea. Disponível em: https://www.statista.com/topics/5098/music-industry-in-south-korea

  40. Emerge (2023): People in Emerging Countries More Likely to Trust AI, Study Reveals. Disponível em: https://decrypt.co/125329/emerging-countries-more-artificial-intelligence-trust-ai-study

  41. Flusser, V., & Roth, N. A. (2011). Into the Universe of Technical Images (NED-New edition, Vol. 32). University of Minnesota Press.

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