Dicionário Conceitual do Antropoceno: Vocabulário para a Experiência Ambiental Contemporânea Aprimorado (Penúltima Parte)
- Sérgio Luiz de Matteo
- há 1 dia
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Memória Biocultural

Definição: Conjunto de conhecimentos, práticas, narrativas, crenças e instituições que conectam comunidades humanas a seus territórios e ecossistemas específicos, transmitidos através de gerações e constantemente atualizados pela experiência viva com o ambiente. É a intersecção dinâmica entre diversidade biológica e diversidade cultural, onde o saber sobre a natureza é inseparável das formas de viver e se relacionar com ela.
Gênero: Feminino (F)
Perspectivas:
Antropologia/Etnobiologia: Estuda a relação entre culturas e a biodiversidade, documentando os conhecimentos tradicionais e sua importância.
Ecologia da Paisagem/Biologia da Conservação: Reconhece o papel das práticas culturais na manutenção da biodiversidade e na gestão sustentável dos ecossistemas.
Estudos Indígenas: Valoriza os sistemas de conhecimento indígena como fontes vitais para a compreensão e conservação ambiental.
Exemplo: Povos pesqueiros desenvolvem memória biocultural ao acumular conhecimentos sobre ciclos reprodutivos de peixes, padrões de marés, sinais naturais de mudanças climáticas e técnicas de pesca sustentável, integrando observação científica popular e tradições ancestrais passadas de geração em geração.
Metabolismo Social

Definição: Fluxo de materiais e energia entre sociedades humanas e o meio ambiente, incluindo processos de extração (recursos), transformação (produção), consumo e descarte (resíduos). Conceito que revela como padrões sociais de produção e consumo se traduzem em impactos ecológicos específicos e de larga escala, evidenciando a dependência material das sociedades em relação à natureza e as consequências dessa interação.
Gênero: Masculino (M)
Perspectivas:
Economia Ecológica: Quantifica os fluxos de materiais e energia, analisando a eficiência de uso dos recursos e a pegada ecológica.
Sociologia Ambiental: Estuda como as estruturas sociais, as relações de poder e os estilos de vida moldam os padrões de extração, consumo e descarte.
Ecologia Industrial: Busca otimizar os fluxos de materiais e energia em sistemas industriais para minimizar impactos e promover a circularidade.
Exemplo: O metabolismo social de megacidades como São Paulo processa diariamente milhões de toneladas de materiais (alimentos, combustíveis, água) e gera enormes volumes de resíduos (esgoto, lixo sólido), alterando ecossistemas em escalas regionais e globais através da extração de recursos em locais distantes e do despejo de resíduos.
Naturacultura

Definição: Conceito que dissolve a dicotomia tradicional entre "natureza" e "cultura", reconhecendo que ambas se constituem mutuamente através de processos históricos e contínuos de co-evolução e hibridização. Enfatiza que não existe "natureza pura" intocada pela ação humana nem "cultura independente" da materialidade biofísica, sendo tudo um amálgama indissociável de processos naturais e influências humanas.
Gênero: Feminino (F)
Perspectivas:
Antropologia Pós-Estruturalista: Estuda como as culturas e os ambientes são mutuamente constituídos, desafiando dualismos eurocêntricos.
Filosofia Ambiental/Pós-humanismo: Argumenta contra a separação cartesiana entre mente/corpo, humano/natureza, propondo ontologias relacionais.
Estudos Ambientais: Analisa a ubiquidade da marca humana em todos os ecossistemas, desde florestas gerenciadas até paisagens urbanas, reconhecendo o caráter híbrido de toda a realidade.
Exemplo: Florestas manejadas por povos tradicionais exemplificam naturacultura ao combinar conhecimentos ancestrais com dinâmicas ecológicas, criando paisagens que são simultaneamente naturais (em sua composição e ciclos) e culturais (em sua forma e significado), resultantes de uma longa interação. Da mesma forma, a Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, uma floresta replantada no século XIX, é um "híbrido natureza-cultura" exemplar.
Necro-Efeito (Efeito Necrosférico)

Definição: O conceito de "danos colaterais" elevado a uma condição geológica e ética permanente. Refere-se às marcas negativas, frequentemente invisibilizadas e externalizadas, deixadas por cadeias de produção e consumo sobre populações vulneráveis (humanas e não-humanas) e ecossistemas distantes. É a externalização da morte, doença e degradação como princípio organizador da economia moderna, onde os custos são transferidos para os mais fracos e distantes.
Gênero: Masculino (M)
Perspectivas:
Ética/Filosofia: Questiona a noção de inocência do consumidor ao revelar as cadeias de sofrimento e destruição embutidas em commodities banais e processos produtivos globais.
Ecologia Política: Analisa como as relações de poder e o extrativismo colonial produzem zonas de sacrifício e transferem os impactos negativos para o Sul global.
Estudos Urbanos Críticos: Explora como o crescimento econômico e urbano gera "sombras" de poluição e descarte em áreas marginalizadas.
Exemplo: A bateria de um smartphone contém lítio, cuja extração consome milhões de litros de água em regiões áridas do Chile, secando comunidades e ecossistemas locais. O usuário final experimenta a tecnologia, enquanto o necro-efeito é sofrido a milhares de quilômetros de distância por comunidades que não se beneficiam da produção.
Necropolitana

Definição: Dinâmica urbana caracterizada pela concentração de atividades e populações que produzem morte ecológica e social de forma sistemática. Aplica o conceito de necropolítica (que se refere ao poder de decidir quem vive e quem morre) ao urbanismo, analisando como cidades podem ser organizadas espacialmente para produzir vida para alguns e morte (em suas diversas formas de precarização, doença e risco ambiental) para outros, especialmente populações marginalizadas.
Gênero: Feminino (F)
Perspectivas:
Urbanismo Crítico/Geografia Urbana: Estuda a segregação espacial e a distribuição desigual dos riscos ambientais e sociais nas cidades.
Ecologia Política Urbana: Analisa as relações de poder que estruturam a produção de paisagens urbanas de morte e sacrifício.
Saúde Pública Ambiental: Investiga as correlações entre condições urbanas (poluição, acesso a serviços) e a saúde e expectativa de vida das populações.
Exemplo: Zonas industriais poluentes localizadas próximas a favelas exemplificam necropolitana ao concentrar riscos ambientais (contaminação do ar e da água, resíduos tóxicos) sobre populações vulneráveis, criando paisagens urbanas estruturadas pela produção sistemática de doença e morte, onde o acesso à vida é negado.
Obsolescência Planetária

Definição: Condição em que sistemas naturais fundamentais para a vida na Terra tornam-se "obsoletos" ou disfuncionais devido à velocidade e magnitude das transformações antropogênicas. Cria um descompasso entre os tempos humanos (rápidos, tecnológicos) e os tempos ecológicos (lentos, evolutivos), onde a capacidade de adaptação e regeneração da natureza é superada, levando ao colapapso ou à perda de funções essenciais.
Gênero: Feminino (F)
Perspectivas:
Ecologia de Sistemas/Biologia Evolutiva: Analisa a capacidade de resiliência e adaptação dos sistemas vivos e os limiares de ruptura.
Filosofia do Tempo/Aceleração Social: Explora a dissonância entre os diferentes ritmos temporais e suas consequências para a vida no planeta.
Teoria Crítica: Questiona a ideia de progresso linear e a busca incessante por novidade que leva à descartabilidade da própria Terra.
Exemplo: Espécies migratórias enfrentam obsolescência planetária quando suas rotas ancestrais se tornam inadequadas devido às mudanças climáticas aceleradas (alterações de temperatura, desabrochar de flores fora de época), não havendo tempo evolutivo para adaptação ou para encontrar novos habitats, levando ao seu declínio.
Obsolescência Perceptual

Definição: Perda da capacidade de perceber e responder a sinais ambientais sutis ou a mudanças graduais, devido à vida em ambientes artificiais, mediatizados por tecnologias e desconectados dos ritmos naturais. Resulta em desconexão sensorial com o mundo vivo e redução da sensibilidade a mudanças ecológicas e à degradação ambiental, naturalizando a perda e dificultando a reação a crises.
Gênero: Feminino (F)
Perspectivas:
Psicologia Ambiental/Cognitiva: Estuda como a urbanização e a tecnologia afetam a percepção e a consciência ambiental.
Sociologia Urbana/Antropologia do Sentido: Analisa como a vida moderna molda os sentidos e a forma como interagimos com o ambiente.
Filosofia da Percepção: Explora a forma como a experiência mediada pela tecnologia altera nossa relação direta com o mundo.
Exemplo: Crianças que crescem em apartamentos urbanos podem desenvolver obsolescência perceptual ao não reconhecer sinais de mudanças de estação (como a floração de árvores nativas), cantos de pássaros que indicam espécies locais ou odores que sinalizam a qualidade do ar, perdendo a conexão sensorial com o ambiente natural.
Parentesco Mais-que-Humano

Definição: Reconhecimento de relações de parentesco que transcendem a espécie humana, incluindo vínculos afetivos, éticos, espirituais e práticos com animais, plantas, lugares, rios, montanhas e fenômenos naturais. Desafia o antropocentrismo das estruturas familiares tradicionais, propondo uma expansão da comunidade de parentesco para além dos laços consanguíneos humanos, fundamentando uma ética de cuidado e responsabilidade mútua.
Gênero: Masculino (M)
Perspectivas:
Antropologia do Parentesco/Estudos Indígenas: Analisa como muitas culturas não-ocidentais já compreendem o parentesco em termos multiespécies.
Filosofia Pós-humanista/Ética Ambiental: Questiona as fronteiras ontológicas entre humano e não-humano e propõe uma moralidade que inclua toda a vida.
Ecologia Relacional: Estuda como as interações ecológicas podem ser compreendidas como formas de parentesco e interdependência.
Exemplo: Comunidades rurais que consideram rios como "avós" e florestas como "mães" praticam parentesco mais-que-humano ao estruturar relações sociais e responsabilidades éticas para além dos vínculos consanguíneos humanos, protegendo esses "parentes" como se fossem membros da própria família.
Política Mais-que-Humana

Definição: Abordagem política que inclui atores não-humanos (animais, plantas, ecossistemas, tecnologias, rios) como participantes legítimos em processos de tomada de decisão, questionando o monopólio humano sobre a definição do político e da governança. Busca desenvolver mecanismos e instituições que deem voz e representação aos interesses dos não-humanos, reconhecendo sua agência e seu papel na construção de realidades sociais e ecológicas.
Gênero: Feminino (F)
Perspectivas:
Ciência Política/Teoria Democrática: Desafia as concepções tradicionais de representação e participação, expandindo-as para além dos humanos.
Filosofia Política/Ética Ambiental: Fundamenta a extensão da consideração política a entes não-humanos, reconhecendo seus direitos e sua agência.
Sociologia da Tecnologia/Estudos de Ciência e Tecnologia (STS): Analisa o papel de objetos e tecnologias como atores na arena política.
Exemplo: Conselhos ambientais que incluem "representantes" de rios, florestas e espécies ameaçadas através de porta-vozes especializados (cientistas, defensores da natureza, líderes indígenas) praticam política mais-que-humana ao ampliar a comunidade política para além dos humanos, garantindo que os interesses do ecossistema sejam considerados.
Pós-Natureza

Definição: Um conceito que questiona a dicotomia tradicional entre "natureza" e "cultura", argumentando que, no Antropoceno, a ideia de uma natureza intocada, pura ou selvagem, já não é mais viável. A "pós-natureza" reconhece que todos os ecossistemas, paisagens e até mesmo a biologia humana são, de alguma forma, moldados, influenciados ou hibridizados pela atividade humana. Não se trata de negar a existência do mundo não-humano, mas de compreender que a fronteira entre o que é "natural" e o que é "humano/cultural" tornou-se permeável e interconectada, exigindo uma reavaliação de nossa relação com o ambiente.
Perspectivas:
Filosofia/Ontologia: Desafia o dualismo cartesiano entre natureza e cultura e ilumina novas ontologias que veem o mundo como um contínuo de interações.
Antropologia: Explora como as sociedades co-produzem seus ambientes e significados, e como a intervenção humana se tornou ubíqua.
Estudos Ambientais: Analisa a ubiquidade da marca humana em todos os ecossistemas, desde florestas gerenciadas até paisagens urbanas, reconhecendo que mesmo os lugares mais "selvagens" têm uma história de interação humana.
Exemplo: A Floresta da Tijuca, no Rio de Janeiro, frequentemente vista como uma "floresta natural" exuberante, é, na verdade, uma vasta floresta replantada no século XIX para combater o desmatamento e proteger os mananciais da cidade. Ela é um "híbrido natureza-cultura" exemplar, uma paisagem que, embora aparentemente selvagem, é resultado direto da intervenção humana para restaurar funções ecológicas. A compreensão da Tijuca como pós-natureza nos leva a questionar o que realmente significa "preservar" ou "restaurar" no Antropoceno.
Queer Ecology

Definição: Perspectiva que questiona e desestabiliza as normas de gênero, sexualidade e reprodução através da observação da diversidade e fluidez de comportamentos reprodutivos e sociais na natureza. Desafia argumentos sobre a "naturalidade" de arranjos sociais humanos heteronormativos, celebrando a diversidade (sexual, de gênero, de espécies) como um princípio ecológico fundamental e uma força de resiliência, e conectando a opressão de minorias sexuais com a dominação da natureza.
Perspectivas:
Teoria Queer/Estudos de Gênero: Desconstrói as categorias binárias e as hierarquias de gênero e sexualidade, mostrando sua artificialidade.
Biologia/Zoologia: Documenta a vasta gama de comportamentos reprodutivos, sexuais e sociais (homossexualidade, assexualidade, transgeneridade, etc.) no reino animal e vegetal.
Filosofia Ambiental/Ecofeminismo: Conecta a dominação da natureza com as formas de opressão social, incluindo a homofobia e a transfobia.
Exemplo: A existência de mais de 1.500 espécies animais com comportamentos homossexuais documentados (como pinguins, golfinhos e primatas) sustenta argumentos de queer ecology sobre a naturalidade e valor ecológico da diversidade sexual e de gênero, desmantelando a ideia de uma "natureza" heteronormativa.

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