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Ensaio - Emprestando Aura e "Terroir" à Produção Artística: Estratégias para Recuperar a Autenticidade na Era Digital


Imagem contrastando uma obra de arte original e uma reprodução digital
Imagem contrastando uma obra de arte original e uma reprodução digital

Introdução: A Busca pela Autenticidade em um Mundo de Reprodução


Na era digital, a arte enfrenta um desafio significativo: manter sua autenticidade em um contexto onde a reprodução é instantânea e global. Walter Benjamin (1936), em A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica [1], argumentou que a reprodução em massa corrompe a aura de uma obra de arte — sua singularidade e presença única, vinculada ao seu contexto original. Paralelamente, o conceito de terroir, originário da enologia, pode ser adaptado à arte para descrever a conexão entre uma obra e seu contexto geográfico, histórico ou cultural.


Este artigo propõe estratégias práticas para artistas recriarem aura e terroir em suas produções, resistindo à padronização imposta pela indústria cultural e à desmaterialização digital.


A seguir, exploramos como essas estratégias podem ser aplicadas, com exemplos concretos e embasamento teórico.


Fundamentos Teóricos


Uma comparação do conceito de aura de Walter Benjamin e terroir artístico, onde a aura é associada à unicidade de uma obra e o terroir à conexão com o contexto geográfico, cultural e histórico
Uma comparação do conceito de aura de Walter Benjamin e terroir artístico, onde a aura é associada à unicidade de uma obra e o terroir à conexão com o contexto geográfico, cultural e histórico

Aura: A Singularidade da Obra de Arte


Walter Benjamin (1936) definiu a aura como a qualidade intangível que confere unicidade a uma obra, ligada à sua presença física e temporal. Ele argumentou que a reprodução mecânica, como a fotografia e o cinema, diminui essa aura ao descontextualizar a obra [1]. Na era digital, onde imagens são replicadas infinitamente como pixels ou NFTs, a aura parece ainda mais ameaçada. No entanto, artistas contemporâneos têm encontrado maneiras de preservar ou recriar essa aura, utilizando técnicas que enfatizam a materialidade e a singularidade da obra.


Terroir Artístico: Contexto como Identidade


O conceito de terroir, amplamente utilizado na enologia, refere-se ao conjunto de fatores ambientais — solo, clima, topografia — que conferem caráter único a um vinho. Na arte, o terroir artístico pode ser entendido como a influência do contexto geográfico, cultural e histórico na criação de uma obra, incluindo, também, práticas comunitárias e memórias coletivas. Por exemplo, as telas de Candido Portinari refletem o terroir do interior brasileiro, com suas cores terrosas e temas caipiras. Este conceito é explorado em Terroir: Art Through the Eyes of Contemporary Artists [2], que destaca como o contexto molda a identidade artística.


A Indústria Cultural e a Ameaça à Autenticidade


Adorno e Horkheimer, em Dialética do Esclarecimento (1947) [3], criticaram a indústria cultural por transformar a arte em mercadoria, priorizando a replicabilidade em detrimento da autenticidade. Plataformas digitais como Instagram e TikTok amplificam esse problema, favorecendo conteúdos padronizados que diluem a conexão entre a obra e sua origem. No entanto, estratégias como a interatividade e a documentação do processo criativo podem contrapor essa tendência, como discutido em The Art of Imperfection (2022) [4].


Estratégias para Recriar Aura e Terroir


Imagens de cerâmicas com rachaduras intencionais (inspiradas no kintsugi) e pinturas com imperfeições, demonstrando como essas falhas acrescentam valor e autenticidade às obras
Imagens de cerâmicas com rachaduras intencionais (inspiradas no kintsugi) e pinturas com imperfeições, demonstrando como essas falhas acrescentam valor e autenticidade às obras

Imperfeição como Assinatura


A imperfeição deliberada pode ser uma assinatura artística que reforça a aura da obra, destacando sua humanidade e unicidade. Por exemplo, a artista japonesa Yuko Takada Keller utiliza rachaduras intencionais em cerâmicas, inspiradas no kintsugi, para simbolizar a beleza na imperfeição. Essa prática é explorada em Wabi-Sabi: Celebrating Imperfections in Art and Life (2023) [5], que destaca como a estética japonesa valoriza falhas como parte da expressão artística. Outro exemplo é Michelangelo, que usava imperfeições para adicionar profundidade, como discutido em Michelangelo’s Signature Imperfection (2022) [6]. A imperfeição também é celebrada em culturas como a Navajo, onde tecelãs deixam uma "linha espiritual" em seus tapetes para permitir que o espírito da artesã escape, conforme descrito em The Art of Deliberate Imperfection (2017) [7].


Incorporação do Contexto Geográfico


Incorporar o contexto geográfico na arte cria uma conexão direta com o terroir. Essa abordagem é discutida em Geography and Art: An Expanding Field (2013) [8], que explora como artistas integram elementos do ambiente em suas criações. Outro exemplo é a artista Euni Karogers, que desenvolveu o Terroir Painting, usando materiais forrageados como argila e vinho em suas pinturas [9]. Essas práticas reforçam a conexão entre a obra e seu contexto, preservando sua autenticidade.


Narrativas de Origem


Narrativas de origem vinculam a obra a histórias pessoais ou coletivas, enriquecendo sua aura. A fotógrafa Carolle Bénitah costura sobre fotos antigas de família, transformando memórias em arte têxtil, como descrito em The Art of Storytelling: Narratives in Visual Art (2023) [10]. Outro exemplo é Diego Rivera, cujos murais, como History of Mexico, narram a história do México desde suas origens astecas até conflitos modernos, conforme discutido em Narrative Painting Across Cultures and Eras (2024) [11]. Essas narrativas tendem a estimular a conexão emocional com o espectador, preservando a autenticidade da obra.


Interatividade "Site-Specific"


A interatividade "site-specific" cria experiências únicas que dependem do local e da participação do público. A instalação The Weather Project (2003) na Tate Modern usou luz e umidade para recriar um sol artificial, uma experiência irreplicável fora daquele espaço. Esse conceito é abordado em Interactive Art: Engaging Viewers in a Multi-Sensory Experience (2023) [12]. Outro exemplo é Listening Post (2001) de Mark Hansen e Ben Rubin, que utiliza dados de comunicação humana para criar uma instalação sonora interativa, conforme descrito em Strategies of Interactive Art (2010) [13]. Essas obras reforçam a "aura" ao criar experiências únicas vinculadas ao local.


Documentação do Processo


Documentar o processo criativo — por meio de esboços, notas, fotografias ou vídeos — preserva a aura ao revelar a jornada do artista. O pintor Jonny Green, por exemplo, inclui QR codes em suas telas que direcionam a diários em vídeo, como discutido em The Power of Process: Documenting the Artistic Journey (2025) [14]. A artista Sophie Calle também utiliza documentação como parte de sua prática, como em Suite Vénitienne (1979), onde registra o processo de seguir um homem de Paris a Veneza, conforme descrito em Documentation of Artworks  (s.d.) [15]. Essa prática torna a obra mais acessível e autêntica, conectando o espectador ao seu contexto de criação.


Estudo de Casos


Frida Kahlo e o Terroir Mexicano


Frida Kahlo incorporou símbolos da cultura mexicana, como vestidos tehuana e cores vibrantes, além de sua biografia marcada pela dor física, em suas telas. Sua casa-ateliê, La Casa Azul, é hoje um santuário que preserva sua aura, como descrito em Frida Kahlo and the Mexican Terroir (2018) [16]. Suas obras, como Autorretrato com Colar de Espinhos, refletem o terroir mexicano ao integrar elementos culturais e pessoais, criando uma conexão profunda com o espectador.


Banksy e a Aura do Anonimato


Banksy, com sua identidade secreta, cria obras que ganham aura por meio de contextos específicos, como Girl with Balloon, que se autodestruiu após ser leiloada em 2018. Esse "terroir urbano" é analisado em Banksy’s Urban Terroir (2013) [17], que destaca como o anonimato e o contexto urbano reforçam a singularidade de suas obras.


Arte Indígena Contemporânea


“Pata Ewa’n – O coração do mundo”, 2016. Obra de Jaider Esbell
“Pata Ewa’n – O coração do mundo”, 2016. Obra de Jaider Esbell

Artistas como Jaider Esbell ressignificam técnicas tradicionais – como a pintura corporal e os mitos – em telas contemporâneas, reconectando-se ao terroir ancestral [18]. Sua obra constitui um exemplo paradigmático de como manter vínculos com a cultura ancestral em contextos distintos.


Em 2024, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) lançou a exposição de arte Amazônia: Um Centro de BioCriatividade. A exposição reuniu obras de artistas proeminentes de países latino americanos, como Sheroanawe Hakihiiwe (Venezuela), Roberto Huarcaya (Peru), Susana Mejía (Colômbia), Gisela Motta & Leandro Lima (Brasil), Uýra (Brasil) e Olinda Silvano (Peru). A mostra incluiu instalação, fotografia, videoarte, pintura e arte sonora, expressando a exuberância da Amazônia por meio de uma abordagem diversificada e inclusiva, materializando a inspiração infinita que existe na natureza amazônica [19].


Desafios: Quando o Mercado Corrompe a Aura


A commoditização da autenticidade, como a venda de certificados ou NFTs, pode simular singularidade, mas é frequentemente industrializada. Os NFTs (tokens não fungíveis) são ativos digitais únicos armazenados em blockchain, frequentemente usados para representar obras de arte digitais ou físicas. Eles prometem autenticidade e exclusividade, mas a capacidade de produzi-los em massa levanta questões sobre sua verdadeira singularidade. Como discutido em The Authenticity Industries (2023) [20], a autenticidade no mercado cultural muitas vezes é fabricada para atender às demandas do mercado, e os NFTs exemplificam isso ao transformar obras digitais em ativos financeiros especulativos. Artigos como o da Jacobin (2022) [21] reforçam essa visão, descrevendo os NFTs como uma expressão do capitalismo que transforma tudo em mercadoria, muitas vezes sem valor artístico intrínseco.


Considerações Finais: A Reconstrução da Aura na Era da Reprodução Ilimitada


“Espíritos dos Caxiris”, 2017. Obra de Jaider Esbell
“Espíritos dos Caxiris”, 2017. Obra de Jaider Esbell

Revisitando Benjamin: Atualidade e Resiliência Conceitual


O ensaio de Walter Benjamin (1936) [1] permanece um farol crítico para compreender os dilemas da arte contemporânea. Sua tese sobre a erosão da aura pela reprodutibilidade técnica amplificou-se na era digital, onde a replicação de obras como pixels ou NFTs desloca a experiência do "aqui e agora" para o domínio do efêmero virtual.


Terroir como Estratégia de Sobrevivência Cultural


A conexão entre obra e contexto geográfico-cultural revelou-se uma ferramenta política contra a padronização da indústria cultural. Obras como a do indígena Jaider Esbell demonstram que o terroir não é nostalgia, mas um dispositivo de reexistência. Ao incorporar elementos regionais ou narrativas ancentrais, artistas transformam o local em universal, desafiando a lógica desenraizadora das plataformas digitais.


Por uma Ecologia da Autenticidade


A arte do século XXI exige um equilíbrio dialético entre inovação e enraizamento:


  • Tecnologia como mediadora, não ditadora: Ferramentas como AR e blockchain devem amplificar narrativas de origem, não substituí-las.


  • Imperfeição como ética: Kintsugi em cerâmicas e "linhas espirituais" em tapetes lembram que a humanidade resiste na falha.


  • Terroir como rede global: Laços ancestrais (como na arte indígena) ou memórias urbanas (como em Banksy) conectam-se em plataformas decoloniais, formando uma geopolítica da autenticidade.


Como previu Walter Benjamin, a reprodução técnica não matou a aura — deslocou seu campo de batalha. Em meio às trincheiras digitais, em que obras de arte transformam-se ativos financeiros especulativos, sem valor intrínseco, a autenticidade não deve ser vista como fetiche, mas como ato de resistência: uma prática contínua de reencantamento do mundo.


Referências


  1. Benjamin, W. (1936). A Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade Técnica. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/benjamin/1936/mes/obra-arte.htm

  2. Maenius, C. (2017). Terroir: Art Through the Eyes of Contemporary Artists. Amazon.

  3. Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (1947). Dialética do Esclarecimento. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/adorno/1947/06/dialetica_esclarecimento.pdf

  4. Kleon, A. (2022). The art of imperfection. Disponível em: https://austinkleon.com/2022/12/02/the-art-of-imperfection/

  5. O’Neill, T. (2023). Wabi-Sabi: Celebrating Imperfections in Art and Life. Tim O’Neill Studio. Disponível em: https://timoneillstudios.com/wabi-sabi-celebrating-imperfections-in-art-and-life/

  6. Kuhner, J. B. (2022). Michelangelo’s Signature Imperfection. Medium. Disponível em: https://medium.com/in-medias-res/michelangelos-signature-imperfection-c70b7f5eb932

  7. Amusing Planet. (2017). The Art of Deliberate Imperfection. Disponível em: https://www.amusingplanet.com/2017/08/the-art-of-deliberate-imperfection.html

  8. Hawkins, H. (2013). Geography and Art: An Expanding Field. Progress in Human Geography. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/0309132512442865

  9. Karogers, E. (s.d.). Terroir Painting. Disponível em: https://www.eunikarogers.com/terroir-painting

  10. Bechara, K. (2023). The Art of Storytelling: Narratives in Visual Art. Medium. Disponível em: https://atelierkristel.medium.com/the-art-of-storytelling-narratives-in-visual-art-7533af9fc320

  11. Invaluable. (2024). Narrative Painting Across Cultures and Eras. Disponível em: https://www.invaluable.com/blog/narrative-painting/

  12. Eclectic Gallery. (2023). Interactive Art: Engaging Viewers in a Multi-Sensory Experience. Disponível em: https://eclecticgallery.co.uk/news/212-interactive-art-engaging-viewers-in-a-multi-sensory-experience-unveiling-the-dynamic-world-of-interactive-art-a/

  13. Taylor & Francis. (2010). Strategies of Interactive Art. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.3402/jac.v2i0.5525

  14. RMCAD. (2025). The Power of Process: Documenting the Artistic Journey. Disponível em: https://www.rmcad.edu/blog/the-power-of-process-documenting-the-artistic-journey/

  15. Documentary Art Practices. (s.d.). Documentation of Artworks. Disponível em: https://documentaryartpractices.wordpress.com/

  16. González-Andrieu, C. (2018). Frida Kahlo and the Mexican Terroir. Bridge to Wonder.

  17. Cresswell, T. (2013). Banksy’s Urban Terroir. Routledge.

  18. Instituto Pipa (2023). Jaider Esbel. Disponível em https://www.premiopipa.com/pag/jaider-esbell/

  19. Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) (2024). BID lança exposição de arte: Amazônia: Um Centro de BioCriatividade. Disponível em: https://www.iadb.org/pt-br/noticias/bid-lanca-exposicao-de-arte-amazonia-um-centro-de-biocriatividade

  20. Serazio, M. (2023). The Authenticity Industries: Keeping It Real in Media, Culture, and Politics. Stanford University Press

  21. Jacobin (2022). NFTs Are, Quite Simply, Bullshit. Disponível em: https://jacobin.com/2022/01/nfts-fallon-paris-hilton-bored-ape-digital-imagery-commodification




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