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SK 1

Atualizado: 31 de ago.

1 O Inferno das Luzes Brancas


A imagem retrata uma mulher em um supermercado, com expressão de tensão e ansiedade. Ela empurra um carrinho de compras enquanto se depara com prateleiras cheias de latas de café que parecem observá-la. O ambiente é iluminado por luzes fluorescentes fortes, e o contraste entre a sua aparência agitada e o olhar intenso dos produtos cria uma sensação de desconforto e claustrofobia.

O supermercado HiperBom era uma catedral de horror fluorescente. As luzes do teto não iluminavam; esfolavam. Cada watt era uma agulha cravada na retina de Joscelin, ampliando contornos, cores e sombras até à distorção. O ar condicionado soprava uma viração gelada e constante, mas sob a pele, ela sentia um calor úmido, como se o seu sangue fervesse em câmara lenta.


Ele empurrava o carrinho com uma mão, distraído, o olho no celular na outra. Algo do trabalho, murmurara. Joscelin tentara acompanhar, mas os sons a engoliam vivos: o zumbido agressivo das câmaras frigoríficas era um enxame de abelhas metálicas enfurecidas; o clique-claque das rodinhas do carrinho ao lado transformava-se em marteladas num prego dentro do seu crânio; o riso estridente de uma criança ao fundo soou como vidro partido.


"Feijão preto ou rosinha?" Ele perguntou de repente, erguendo duas latas idênticas para ela, como se apresentasse troféus absurdos. Sua voz veio abafada, como se ela estivesse submersa.


Joscelin abriu a boca. Nada saiu. A pergunta simples desencadeou uma avalanche:


O Corredor Alongou-se: As prateleiras infinitas de enlatados esticaram-se como um pesadelo de Escher, convergindo para um ponto de fuga que sugava a luz.


As Latas de Café Ganharam Olhos: De repente, não eram produtos. Eram sentinelas. Centenas de cilindros metálicos, rótulos berrantes (MELHOR COMPRA! SELO OURO! ORGÂNICO!) observando-a, julgando-a. Escolhe. Escolhe ERRADO. Sofre.


O Ar Faltou: O peito apertou. Cada inspiração foi uma batalha contra um peso de chumbo. As luzes piscaram – ou foram as suas pálpebras tremendo?


O Suor: Frio, traiçoeiro, escorrendo pela espinha sob a blusa leve. Um rio de vergonha invisível.


Ele não notou. Ou não quis notar. Baixou o celular com um suspiro impaciente. "Jos? Café. Precisamos de café. Moído ou em grão? Torrado claro ou escuro? Qual marca?" Cada opção era uma porta para um abismo. Moído: mais prático, mas… menos autêntico? Em grão: autêntico, mas exigia moedor, tempo, compromisso. Torrado claro: sabor mais suave, mas… fraco? Torrado escuro: intenso, mas… amargo? Queimado? E as marcas? A vermelha gritava "BARATO!" mas parecia veneno. A azul sussurrava "PREMIUM!" mas era ostentação? A embalagem de papel cru prometia "SUSTENTÁVEL!" mas seria só marketing?


"Eu…" A voz sumiu num sibilo. Sua mão, trêmula, estendeu-se para uma lata azul e dourada. Café do Sítio. Aroma Suave. O toque no metal gelado foi um choque. Ela retraiu a mão como se tivesse queimado.


"Vai essa?" Ele pegou a lata que ela quase tocara. "Café do Sítio. Nunca provei. Mas o pacote é bonito." Um comentário casual, inocente. Mas para Joscelin, foi o martelo final. "O pacote é bonito." Reduzia a sua agonia monumental a uma escolha estética superficial. Enquanto ela lutava para não desmoronar diante do peso existencial de existir e escolher num universo hostil, ele avaliava a embalagem.


E foi então que ela o viu verdadeiramente: não ao lado dela, mas distante. Imerso na sua lista pragmática, no seu mundo de certezas lineares. Ele pegou a lata e colocou no carrinho. "Pronto. Resolvido." Girou o carrinho para seguir para os laticínios.


Joscelin ficou para trás. Paralisada. Olhando fixamente para o vazio onde a lata estivera. O zumbido das câmaras frigoríficas transformou-se num rugido. As luzes brancas fundiram-se num clarão cegante e doloroso. O chão pareceu inclinar-se. Ela agarrou-se à prateleira gelada, as unas cravando-se no plástico, tentando não cair, não gritar, não desaparecer ali mesmo, entre as latas de atum e as ervilhas em conserva.


Ele percebeu que ela não o seguia. Parou alguns metros adiante, virou-se. "Vem, Joss! O que foi agora?" A voz tinha um fio de irritação. "É só café."


"É só café." As três palavras ecoaram na caverna úmida do seu pânico, transformando-se no epitáfio de tudo o que eles não conseguiam comunicar. Naquele instante, sob as luzes assassinas do HiperBom, Joscelin soube, com uma clareza cortante: Ele nunca entenderia. Ele nunca tentaria entender a tempestade dentro dela. Ele via a sua dor como um inconveniente. Um obstáculo entre ele e o feijão, o café, a saída rápida.


E o pior? Ele acreditava mesmo que a amava. Enquanto empurrava o carrinho cheio de ilusões baratas e latas de café mal escolhidas, ele achava que aquilo era amor. Joscelin soltou a prateleira. Forçou as pernas a moverem-se. Cada passo foi sobre vidros quebrados invisíveis. Seguiu-o em silêncio, o coração um bloco de gelo, o grito preso na garganta transformando-se numa semente negra de ressentimento. A ansiedade no supermercado não fora um episódio isolado. Fora a prova final. E o capítulo do livro sobre ele, escondido na bolsa, ganhara ali, entre as latas de Café do Sítio, seu parágrafo mais devastador e verdadeiro.


2 Entreato: Antes de a Festa Acabar


Uma mulher está em uma festa, com uma expressão decidida, olhando para um homem que se encontra distante, parado na porta. A cena está envolta em luzes estroboscópicas e a mulher segura um copo plástico, enquanto o homem está em um ambiente mais silencioso, refletindo o contraste entre os dois mundos. Perto dele, há tênis de corrida com flores murchas, simbolizando sonhos não realizados.

O apartamento do Leo cheirava a ressaca antecipada: álcool derramado, suor de ansiedade disfarçada de diversão, e o vapor adocicado de Juuls moribundos. Era o cheiro do fim — de uma noite, de um amor, de uma ilusão que teimava em não morrer. Ele encostou na moldura da porta da cozinha, o Juul descarregado pesando no bolso como um revólver sem balas. Precisava ir. A festa era um cadáver que ainda se contorcia ao som de uma playlist aleatória.


Joscelin estava do outro lado da sala, conversando com alguém que ele não reconhecia. Os olhos dela brilhavam com a luz falsa do celular, mas ele conhecia a sombra por trás deles — a mesma que a paralisara diante da prateleira de cafés no HiperBom, semanas antes, enquanto ele escolhia feijão como se o mundo não estivesse desabando ao seu lado. "É só café", ele dissera. Mentira. Era um terremoto silencioso, e os dois soterrados nos escombros.


Agora, sob as luzes estroboscópicas, cada riso dela soava como um verso mal escrito do livro que nunca terminaria. O livro sobre ele. O manuscrito amaldiçoado que ela carregava na bolsa como um segredo e uma arma. Ele sabia. Sentia o peso daquelas páginas não lidas entre eles, mais densas que o Baileys que ela sorvia com goles nervosos.


Seus dedos encontraram o carregador portátil no bolso. Conectou o Juul. O zumbido baixo e insistente foi sua desculpa para não olhar para os tênis de corrida dela, abandonados perto da porta do jardim. Flores murchas repousavam sobre o tecido branco, pétalas cor-de-manhã já amarronzadas — oferendas involuntárias a um caminho que nunca começara. Um epitáfio para rotas fantasmas.


Foi quando ela virou-se. Os olhos deles se encontraram através da fumaça e da multidão. Não havia surpresa, apenas um cansaço antigo, uma batalha ensaiada. Ele viu o momento exato em que ela decidiu atacar: os dedos apertando o copo plástico, a linha fina dos lábios. Ela atravessou a sala como um torpedo.


3 Fim da Festa


A imagem captura o momento de tensão entre um confronto entre o casal. A mulher, com um copo de Baileys, olha diretamente para o homem que a observa com uma expressão fria e distante. Ela parece prestes a explodir de raiva, enquanto o homem se prepara para sair, com os tênis de corrida dela cobertos por flores mortas no fundo, simbolizando promessas quebradas e a inação diante dos sonhos.

"Preciso ir," ele declarou, a voz mais áspera do que pretendia.


Joscelin ergueu os olhos do copo plástico. A luz azul do freezer aberto iluminava seu rosto pálido. "Ir? Agora? A festa mal começou."


"Mal começou? Leo já tá vomitando no vaso decorativo. É hora." Puxou o carregador portátil do bolso, em que há pouco havia conectado o Juul. "E estou sem carga. Literalmente."


Ela deu um gole longo, observando-me por cima da borda do copo. "Fugindo do faux pas, é? Do que disse para a Mara?"


O sangue subiu-lhe à face. "Não sei do que você está falando."


"Oh, não?" Ela se aproximou, o cheiro doce do licor envolvendo-a como uma névoa tóxica. "Sobre ela ser uma artista ‘de Instagram’, só? Que o trabalho dela era ‘fofo, mas descartável’? Isso, na frente de todos?"


"Foi um comentário idiota. Álcool falando."


"Álcool revelando," ela cortou, os olhos estreitos. "Sempre foi teu jeito, não foi? Desdenhar do que não entende. Do que te ameaça."


O zumbido do Juul recarregando parecia amplificado. "Isso é ridículo."


"É?" Ela encostou na bancada, desafiante. "Fala do meu trabalho, então. Dos meus ‘projetos grandiosos’ que nunca saem do papel. Da minha ‘estante de livros por nascer’. Quantas vezes já me chamaste de artista grávida de capa dura, hein? Como se fosse um elogio, quando na verdade é teu jeito condescendente de dizer que nunca vou conceber nada."


"Joscelin…" Começou, mas ela não permitiu.


"Condescendência pura," ela cuspiu, os dedos apertando o copo plástico até amassar. "Sempre foi isso. Você diz que acredita, mas o teu tom... é o de um zoólogo a observar um animal exótico e preguiçoso no cativeiro. 'Olhem a artista gestante! Que interessante a sua paralisia criativa!'"


A lembrança do supermercado invadiu-lhe – Joscelin paralisada no corredor de cafés, os olhos vidrados num terror absurdo. "E você?" Ele retorquiu, a voz carregada de uma raiva súbita. "Quem foge da realidade? Quem fica ansiosa até no supermercado, diante de uma prateleira de café? Que tipo de artista é derrotada por escolhas básicas?"


"Você sempre no pedestal! Fala da Mara como se ela fosse descartável, fala de mim como se eu fosse... uma curiosidade patética. Acredita mesmo que sou uma artista? Ou só gosta da sombra que projeto? Da ideia romântica de namorar alguém 'sensível' e 'complexa', sem ter de lidar com a bagunça real?"


Ele tentou interromper, mas a torrente estava liberada. "Porque estou sempre acordada, mas ainda sonhando?" Ela repetiu a pergunta dele, mas agora com uma amargura cortante. "Porque talvez o sonho seja mais seguro que o teu julgamento constante! Porque talvez o mundo lá fora, o mundo real que você tanto venera, seja um lugar hostil para quem sente demais! Sabe o que é olhar para uma prateleira de café e sentir que cada lata é uma sentença? Que cada escolha errada vai desencadear uma catástrofe? Ansiosa no supermercado?" Ela deu uma risada seca, sem humor. "Chama isso de fraqueza. Eu chamo de sobreviver a um sistema nervoso que não tem filtro, num mundo construído para quem não sente o peso das coisas como eu sinto!"


Ela empalideceu, mas não recuou. "É fácil julgar de fora, não é? Do teu lugar de certezas absolutas. Mas a criação dói. O mundo real esmaga. Você não tem ideia…"


"Tem razão," ele interrompeu, frio. "Não tenho ideia. Você paralisa. E eu…" Ele olhou para o Juul, quase carregado. "Estou cansado de esperar um parto que nunca vem."


Joscelin respirou fundo, sentindo as lágrimas de raiva e humilhação queimarem atrás dos olhos. "Mostra-lhe", sussurrou uma voz dentro dela. "Mostra-lhe o motivo de verdade". A mão dela tremeu em direção à pequena bolsa de lantejoulas pendurada no ombro. Lá dentro, dobrado com cuidado obsessivo, estava o único capítulo concluído do seu romance. O capítulo que ela relia e reescrevia há dois anos. O capítulo sobre ele.


"Quer saber porque os livros não nascem?" A voz dela saiu rouca, perigosamente baixa. "Porque um deles... é sobre você." Viu o sobressalto nos olhos dele, rápido, quase imperceptível. "Sim. Sobre esta coisa tóxica e doce que temos. Sobre como me observa, como me analisa, como transforma a minha ansiedade em anedota privada. Sobre como... como o teu 'acreditar' em mim é só outra forma de controle." Ela tirou o maço de papéis da bolsa, segurando-o como um escudo – ou uma bomba. "E é tão real, tão cru, que me assusta. Porque se o publicar, se o partilhar, será a nossa sentença de morte. E parte de mim... a parte covarde, como diz... ainda quer sobreviver a este desastre que chamamos 'nós'."


Ele ficou imóvel, olhando para os papéis como se fossem uma serpente. O zumbido do Juul parou. O silêncio foi absoluto.


"Mas Joscelin," ele retomou a conversa, a voz agora uma lâmina gelada, "é tarde demais. Percebe?" Apontou para os pés dela, descalços. "Olha para o tênis atrás de você."


Ela olhou para baixo, confusa. Os seus tênis de corrida, imaculados e novos, estavam abandonados perto da porta dos fundos que dava para o jardim. Sobre eles, caídas de alguma árvore lá fora, repousavam flores murchas, pétalas rosa-claras já amarronzadas nas bordas. Os planos de correr, de criar disciplina, de "consertar-se"... fossilizados sob a beleza morta da primavera. A promessa, coberta de poeira e decadência.


"Há flor nos teus tênis de corrida, Joscelin." A frase soou como uma sentença. "Flores mortas. Caíram, murcharam, e os teus tênis… continuam aqui. Parados. Limpos. Nunca correram um metro. Como os teus livros. Como tudo." Ergueu-se, o Juul finalmente verde. "É o símbolo perfeito, não é? A promessa coberta pela poesia murcha da inação. É tarde demais."


Ele moveu-se para a porta. "Vou sair pelo jardim."


"Espera!" A palavra saiu como um grito engasgado. "O livro... o capítulo..." Joscelin estendeu os papéis, num gesto que era ao mesmo tempo desafio e súplica.


Ele olhou para os papéis, depois para o rosto de Joscelin marcado pela confusão e pela dor. Um sorriso amargo tocou os seus lábios. "Guarda. Para a tua estante de capas duras. Parece ser o lugar ideal para coisas que não podem, ou não devem, nascer."E então, veio a facada final, dita com uma calma devastadora: "Vou mudar de ideia sobre você, Joscelin."


Ela engoliu em seco. "Vai mudar de ideia?" A pergunta era um fio de voz.


"Vou mudar de ideia." Foi uma afirmação, não uma dúvida. "Vou mudar de ideia sobre você, sobre nós." Ele abriu a porta. O ar noturno invadiu a cozinha, levando consigo o cheiro doce e podre do Baileys derramado. "Vou mudar de ideia."


A porta fechou-se atrás dele com um clique suave. Joscelin ficou parada, ouvindo os seus passos rápidos desaparecerem no jardim escuro. Olhou para os papéis na sua mão – o capítulo sobre ele, sobre o fim que ela tanto temera e que agora se consumava. Olhou para os tênis cobertos de pétalas mortas. Um tremor percorreu-a, mas não era mais de ansiedade. Era algo mais profundo, mais visceral.


Com mãos surpreendentemente firmes, ela pegou no copo de Baileys amassado e atirou-o contra a parede. O líquido castanho escorreu como sangue barato. Depois, dobrou o capítulo do livro com cuidado excessivo e guardou-o de volta na bolsa. Não era covardia. Era preservação.


"Mudou de ideia", ela sussurrou para a porta fechada, uma lágrima quente finalmente rompendo e descendo pela face. "Mas eu, finalmente, dei à luz." O parto não fora um livro. Fora a verdade nua e cruel que sempre estivera entre eles, agora exposta, respirando por conta própria no silêncio da cozinha vazia. Era uma criação terrível, dolorosa, mas era real. Talvez a única que alguma vez conseguiria completar. As flores nos tênis podiam murchar. Aquela dor, ela sabia, era para sempre. E, de algum modo perverso, era a sua primeira obra verdadeira.

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