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O Restaurador de Ecos


I.

A velha chegou quando a tarde começava a desmaiar na poeira dourada que permanecia suspensa na oficina de Elian. Ela não havia marcado horário — ninguém mais o fazia —, mas ele a recebeu como recebia todos: com a reverência silenciosa de quem sabe estar diante de um fragmento precioso e quebradiço do passado.


"É meu pai", ela disse, sentando-se na cadeira de madeira desgastada que havia pertencido a uma sala de espera de dentista nos anos 2040. "Não consigo mais lembrar a voz dele. Tenho as gravações, claro. Centenas. Mas não é a mesma coisa. Quando ouço as gravações, é como se fosse a voz de um estranho dizendo as palavras de meu pai."


Elian assentiu. Ele compreendia. "Feche os olhos", ele pediu.


A câmara de ressonância psíquica estava no centro da oficina, ocupando o lugar onde uma vez poderia ter estado um altar ou uma forja. Era uma geringonça que parecia não pertencer a século algum: tubos de latão curvados em espirais impossíveis, cristais de quartzo preso com arame de cobre, capacitores antigos que zumbiam numa frequência quase inaudível. Elian a havia construído ao longo de anos, sem planta ou manual, seguindo apenas uma intuição que ele não sabia nomear. Talvez fosse memória ancestral, talvez fosse simplesmente a obstinação de um artesão tentando preservar algo que o mundo insistia em declarar obsoleto.


Ele posicionou as mãos a alguns centímetros da têmpora da velha, sem tocá-la. Fechou os próprios olhos. E mergulhou.


Não havia imagens, não no começo. Havia textura. O áspero de uma barba não feita, raspando contra a bochecha de uma criança. Havia peso. O peso de uma mão grande sobre um ombro pequeno, firme mas não opressiva, dizendo estou aqui sem palavras. Havia ritmo. O padrão de uma respiração durante um abraço, o peito subindo e descendo, um metrônomo de segurança.


E então, sim, a voz.


Não as palavras, mas o timbre. A rugosidade de alguém que havia fumado por décadas e abandonado o vício tarde demais. A inflexão específica do sotaque do interior, onde os "r" vibravam levemente. O hábito de terminar sentenças com um "não é mesmo?" que não esperava resposta.


Elian não criou nada. Ele apenas... encontrou. Como um arqueólogo escovando a poeira de um fóssil, ele afastou as camadas de interferência — as notícias do dia, as preocupações cotidianas, o ruído dos milhões de informações que bombardeavam a mulher diariamente — até que a memória genuína, a Erfahrung, emergiu. Pura. Intacta.


Quando abriu os olhos, havia lágrimas no rosto da velha. Mas ela sorria.


"Eu ouvi", ela sussurrou. "Ouvi de verdade. Não uma gravação. Ele."


Ela pagou em dinheiro físico, notas amareladas que cheiravam a mofo. Antes de sair, virou-se na porta.


"Meu neto me perguntou por que não uso a Memória Prime, como todo mundo. 'Pode ter o pai que quiser, vó', ele disse. 'Pode escolher o melhor pai do catálogo.'" Ela riu, mas era uma risada triste. "Eu perguntei a ele: mas esse pai do catálogo me conhece? Ele não soube responder."


Quando a porta se fechou, Elian permaneceu sentado na penumbra crescente. Em sua oficina, o ar não cheirava a solventes ou verniz, mas a uma poeira quase sagrada de momentos vividos. Ele era um artesão de uma matéria em extinção: a experiência autêntica. Um restaurador de memórias. Não as memórias digitais, perfeitas e frias que flutuavam na nuvem de dados globais, mas os ecos frágeis, as Erfahrungen — as experiências vividas, transmissíveis, que carregam sabedoria — gravadas na alma das pessoas. Seu trabalho era reencontrar a aura perdida nos vincos de uma lembrança.


Seus clientes eram poucos, quase todos velhos. Traziam-lhe fragmentos: a sensação áspera da mão de um pai já morto, o sabor exato de uma sopa de infância numa tarde de chuva, o peso de um primeiro olhar trocado num baile há cinquenta anos. Eram memórias que o tempo e a torrente de informações diárias haviam desgastado, desbotado, quase apagado.

Mas o mundo lá fora movia-se na direção oposta.


II.

O aviso de despejo estava preso na porta havia três semanas quando Kaito apareceu.

Elian não o ouviu entrar. Levantou os olhos do chá frio que não estava bebendo e simplesmente o encontrou ali, parado no limiar entre a rua e a oficina, como se houvesse se materializado. O homem tinha mais ou menos sua idade — quarenta e poucos anos, talvez —, mas havia algo nele que sugeria ser muito mais jovem ou muito mais velho. Os olhos não tinham foco. Olhos de quem passava tempo demais em realidades aumentadas, navegando por camadas de informação sobrepostas ao mundo físico até que o próprio mundo se tornasse apenas mais uma camada, não mais real que as outras.


"Você é Elian", disse o homem. Não era uma pergunta.


"Como soube meu endereço?" Elian se levantou. "Não faço anúncios há anos."


O homem sorriu, mas não respondeu diretamente. "Digamos que você foi... recomendado. Por alguém que conhece seu trabalho muito bem."


Algo na estrutura óssea do rosto do visitante incomodou Elian. A forma como ele inclinava a cabeça. O espaçamento dos olhos. Tinha a sensação estranha de estar olhando para um espelho desfocado, uma versão ligeiramente desalinhada de si mesmo.


"Meu nome é Kaito," ele se apresentou. "Preciso da sua ajuda."


Elian indicou a cadeira. Kaito sentou-se, mas com a rigidez de quem não estava habituado a móveis físicos. Suas mãos procuravam automaticamente por interfaces no ar que não existiam.


"Eu sofri um procedimento," Kaito começou, a voz plana, sem inflexão. "Apagamento de dados afetivos. É um tratamento comum para términos de relacionamento difíceis. Você remove as memórias problemáticas, mantém apenas as neutras. A ideia é que você possa seguir em frente sem dor."


"E funcionou?" perguntou Elian, embora conhecesse a resposta.


"Funcionou demais. Eu não me lembro do rosto dela. Não lembro de nada. Mas meu corpo lembra." Ele tocou o próprio peito, o gesto estranho e mecânico, como se estivesse indicando um órgão num diagrama. "Tenho essa... ausência. Um buraco. Preciso preenchê-la."


Elian esperou.


"Não quero a memória real de volta," Kaito continuou. "Ela é defeituosa. É por isso que fiz o apagamento. Quero algo melhor. Uma despedida. Uma que não doa. Uma que seja... bonita."


Ele estendeu a mão. Nela, um drive de armazenamento, um objeto anacrônico num mundo de transferências em nuvem. Elian não via um drive físico havia anos. "Está tudo aqui," disse Kaito. "Todos os dados sobre ela. Fotos, vídeos, posts de redes sociais, sequenciamento genético, padrões de voz. Tudo. Construa algo com isso. Construa uma memória de despedida. Uma que eu possa carregar sem sangrar."


Elian olhou para o pequeno objeto de metal e plástico como se olhasse para uma arma.

"Não", ele disse devagar. "Não é isso que eu faço. Eu restauro memórias. Não fabrico."


Kaito não pareceu surpreso. "Eu sei. É por isso que preciso de você. A Memória Prime faz esse tipo de coisa, mas o produto deles é... estéril. Você entende a diferença entre uma memória real e uma simulação. Preciso de alguém que saiba onde está a fronteira, para poder cruzá-la de forma convincente."


"Justamente porque eu entendo é que não posso fazer isso."


"Não pode ou não quer?"


Elian não respondeu.


Kaito depositou o drive na mesa entre eles, suavemente, como se estivesse colocando uma moeda num altar de oferenda.


"Pense nisso", disse ele. "Tenho certeza de que você encontrará motivos para reconsiderar."


Quando saiu, Elian percebeu que Kaito não havia deixado forma de contato. Nenhum número, nenhum endereço de rede, nada. Como se soubesse que não precisaria.

O drive permaneceu na mesa.


III.

Pela primeira vez em quinze anos, Elian sentiu-se um falsário. Mas a necessidade o empurrou. Na semana seguinte ao despejo, ele aceitou um emprego temporário com a Memória Prime, apenas para "consultas", disseram. Eles queriam sua expertise artesanal para dar "autenticidade" aos produtos sintéticos. O salário por um dia equivalia ao que ele ganhara no mês inteiro anterior.


Ele trabalhou uma semana. No sexto dia, abriu gavetas e não conseguiu lembrar o que guardava nelas. Objetos que haviam sido seus por décadas pareciam pertencer a um estranho. A própria câmara de ressonância, quando a tocou, estava fria e estranha sob seus dedos.


Foi então que ligou para Kaito. Não sabia o número, mas apenas pensar no nome fez seu terminal de comunicação piscar com um contato novo, como se ele sempre tivesse estado ali.


"Vou fazer", disse Elian. "Mas com uma condição. Só uma. Só desta vez."


"Claro," respondeu Kaito, e havia algo na entonação — uma satisfação muito controlada — que deveria ter servido de alerta.


IV.

Ele guardou sua câmara de ressonância no porão. Cobriu-a com um pano, como se cobrisse um cadáver. Ligou o terminal de dados pela primeira vez dentro da oficina. A tela lançou uma luz azul e fria que transformou todo o espaço. O cheiro de poeira sagrada foi substituído pelo ozônio do processamento eletrônico.


A narrativa de sua própria vida começou a se desintegrar.


Elian passou semanas imerso nos dados de Kaito. Não sentindo. Processando. A mulher que Kaito havia amado e esquecido decompunha-se diante dele numa cacofonia de metadados:

NOME: Yuki Tanaka IDADE_ÚLTIMA_FOTO: 28 anos COR_OLHOS: RGB(101, 67, 33) PADRÃO_RISADA: Arquivo_Áudio_2461.wav TÓPICOS_POSTAGEM_FREQUENTES: [arquitetura, gatos, clima político, café]


Ele analisou milhares de fotografias. Em 847 delas, ela sorria. Em 203, chorava. Em 1.053, tinha uma expressão neutra. Ele calculou o ângulo médio de sua cabeça quando ouvia alguém falar (15 graus à esquerda). Mapeou o padrão de suas caminhadas noturnas através de geolocalizações. Leu cada mensagem que ela já havia enviado, cada comentário que já havia deixado. E ao fim de três semanas, ele não a conhecia minimamente. Conhecia sobre ela. Uma montanha de informação. Mas não a Erfahrung dela, a textura de sua presença, a aura de sua singularidade. Tudo que ele tinha eram dados. Erlebnisse. Choques isolados de informação, incapazes de se fundir numa narrativa coerente.


Então, pela primeira vez, ele fez algo que um restaurador jamais faria. Ele inventou.

Criou um campo de flores que nunca existiu, com cores calibradas para evocar serenidade segundo pesquisas de neuropsicologia das cores. Colocou Yuki e Kaito numa tarde que nunca aconteceu, sob um céu programado em camadas de laranja e rosa segundo proporções áureas. Escreveu o diálogo que eles nunca trocaram, otimizado por algoritmos de processamento de linguagem natural para gerar "fechamento emocional satisfatório".

"Você sempre foi importante para mim", dizia a Yuki sintética. "E você para mim", respondia Kaito. "Mas nossos caminhos divergem aqui." "Eu sei. E está tudo bem." "Está tudo bem." Não havia dor. Não havia arrependimento. Não havia a beleza terrível de um final real. Era perfeito. Reprodutível. Sem aura.


Na terceira semana de trabalho, Elian acordou sem saber onde estava. O laboratório — não, a oficina? — parecia desconhecido. Levou cinco minutos para reconhecer a própria mão tremendo na frente do rosto. Quando se levantou, viu que havia escrito no espelho embaçado do banheiro, com o dedo, dezenas de vezes: Você é Elian Você é Elian Você é Elian. Ele não se lembrava de ter feito isso.


Quando Kaito veio buscar a memória sintética, Elian quase não o reconheceu. Ou melhor, quase não reconheceu a si mesmo — a linha entre eles parecia estar se borrando.


Carregou o arquivo direto para a interface neural de Kaito. Levou 4,7 segundos.

Kaito fechou os olhos. Permaneceu imóvel por um minuto inteiro, processando. Quando os abriu, havia uma expressão que Elian não conseguiu decifrar. Não era felicidade, exatamente. Era mais próximo de... confirmação.


"Funcionou," disse Kaito. "Perfeitamente. É exatamente o que eu esperava." Algo na ênfase da palavra exatamente fez Elian sentir um calafrio que ele não soube explicar.


"Outras pessoas vão querer isso," Kaito continuou. "Você sabe disso, não é? Você acabou de criar algo que o mundo inteiro vai desejar. Memórias melhores que a realidade. Passados sem trauma. Despedidas sem dor."


"Isso não pode se tornar um produto," Elian murmurou.


"Mas já se tornou."


Kaito estendeu uma tela holográfica. Nela, o contrato com a Memória Prime, as cláusulas de licenciamento da "Técnica Elian de Síntese Mnemônica", números que não faziam sentido.


"Eu já assinei em seu nome," disse Kaito. "É apenas uma formalidade."


Ele deveria ter dito não. Deveria ter recusado. Mas quando olhou ao redor da oficina — as paredes rachadas, o aviso de despejo, a câmara de ressonância coberta como um corpo morto — não encontrou forças para lutar.


V.

A Memória Sintética tornou-se um sucesso viral.


Na primeira semana, três novos clientes. No primeiro mês, trezentos. Todos pedindo o mesmo: memórias melhores que a realidade. Despedidas que não despedaçavam. Primeiros amores sem a angústia. Infâncias editadas, expurgadas de traumas. Pais que nunca os haviam decepcionado. Filhos que nunca haviam morrido.


A informação, rápida, chocante e descartável, havia finalmente vencido a narrativa de forma absoluta. As pessoas não contavam mais suas vidas; elas compilavam feeds otimizados. A experiência compartilhada, tecida lentamente numa comunidade ao redor de uma fogueira, fora substituída por um fluxo infinito de Erlebnisse — choques isolados, vividos individualmente na tela, consumidos e descartados no instante seguinte.


Elian ficou rico. Famoso. Tornou-se o maior "Narrador de Dados" do mundo.


Sua oficina transformou-se num laboratório estéril, vinte andares acima do nível da rua, cheio de servidores que zumbiam dia e noite numa nota aguda que ele não conseguia mais não ouvir. As paredes eram brancas. Assepticamente brancas. Não havia janelas. Não havia poeira sagrada. Não havia cheiro algum, exceto o leve aroma químico de plásticos em aquecimento.


Ele não mais restaurava. Ele produzia. Mas a cada memória sintética que criava, algo dentro dele morria. Pequenas coisas, no início. Ele esqueceu o nome de sua primeira cliente. Depois, esqueceu o rosto dela. Então, esqueceu que já havia tido clientes que eram pessoas reais, com histórias reais, buscando fragmentos reais de um passado verdadeiro.

Certo dia, procurou pela câmara de ressonância e não conseguiu se lembrar do que era. O objeto de latão e quartzo, coberto de poeira numa sala de armazenamento, parecia uma peça de museu de uma civilização esquecida. Quando tocou nos tubos curvados, não sentiu reconhecimento. Apenas curiosidade vaga, como se estivesse diante de uma ferramenta cujo propósito se perdeu no tempo.


A sabedoria que ele extraía das histórias dos outros foi substituída por um oceano de informações inúteis. Ele sabia a média de RGB de 10 milhões de sorrisos. Conhecia o algoritmo ótimo para gerar nostalgia. Dominava a técnica de injetar serenidade sintética em memórias de despedida. Mas ele havia esquecido por que qualquer coisa disso importava.


VI.

Uma noite — ou era tarde? Não havia janelas, o tempo havia se tornado uma abstração — Elian estava sentado no laboratório vazio, sozinho entre os servidores, quando sentiu algo estranho.


Uma ausência.


Como se uma parte dele estivesse faltando. Não uma informação. Algo mais profundo. Uma presença que deveria estar ali e não estava. Ele tentou nomear essa ausência, e um nome veio: Ana.


Ana.


Quem era Ana?


Ele correu para o terminal e buscou nos registros. ANA. Milhares de entradas nos logs de produção — clientes chamadas Ana, memórias envolvendo Anas, despedidas de Anas. Mas nenhuma que fosse sua Ana.


Então tentou acessar suas próprias memórias, não os backups digitais, mas a memória orgânica, a memória que deveria estar gravada em seu corpo, em sua alma.

E encontrou apenas silêncio.


Não. Não silêncio. Algo pior. Encontrou dados:

MEMÓRIA_ID: 000001 DESCRIÇÃO: Primeiro Encontro LOCAL: Lago Escondido DATA: 14/06/2077 HORA: 15:47:33 TEMPERATURA: 22°C UMIDADE: 68% USUÁRIOS_PRESENTES: 2 OBJETO_AFETIVO: Ana [Sobrenome: DADOS_CORROMPIDOS] EMOÇÃO_DOMINANTE: [ARQUIVO_AUSENTE]


Ele conseguia acessar os fatos, mas a experiência — o calor do sol na pele, o som da risada dela ecoando na água, a certeza paralisante de ter encontrado o centro de seu universo, a textura do momento quando suas mãos se tocaram pela primeira vez — havia desaparecido completamente. Sufocada sob camadas e mais camadas de dados sintéticos.


Desesperado, ele desceu até o subsolo, onde as coisas antigas eram armazenadas. Encontrou a câmara de ressonância. Limpou a poeira com as mãos trêmulas. Ligou-a.

O zumbido subiu, hesitante, como se a máquina também houvesse esquecido sua função. Ele fechou os olhos, posicionou as mãos perto das próprias têmporas, tentou mergulhar em si mesmo da forma como havia mergulhado em centenas de outras pessoas.


Nada.


O silêncio era total. Ele estava vazio. Ou pior: estava cheio de lixo, de fragmentos de milhares de vidas falsas que ele havia criado, que haviam se sobreposto à sua própria vida até engoli-la completamente.


Ele não era mais um restaurador. Ele era um museu de ruínas falsas.


Em pânico, ele voltou correndo para o laboratório. Abriu o terminal com dedos que mal obedeciam. Digitou na busca global da Memória Prime, o sistema que ele agora conhecia por dentro, o sistema que ele alimentava mas que, secretamente, sempre odiara:

BUSCA: Primeiro Encontro + Lago + Alma Gêmea + Alta Definição

Milhões de resultados. Pacotes de memórias sintéticas de "primeiros encontros perfeitos", otimizados, testados, aprovados por milhões de usuários. Ele ordenou por popularidade. O primeiro resultado tinha uma classificação de 9.9/10 em "Autenticidade Emocional".

"Encontro no Lago ao Pôr do Sol — Pacote Premium — Inclui: Primeira Conversa Inesquecível, Toque de Mãos, Certeza de Destino Compartilhado. Satisfação Garantida ou Reembolso Completo."


Ele deveria ter parado ali. Deveria ter resistido. Mas a ausência dentro dele era insuportável, um buraco negro psíquico que ameaçava colapsar tudo ao seu redor.


Ele clicou em "Adquirir". Fechou os olhos.


E deu o comando: INSTALAR.


VII.

Uma onda de calor o invadiu.


Sol na pele. Não o sol abstrato de uma especificação técnica, mas calor, visceral, entrando pelos poros. Ele sentiu a brisa vinda do lago, trazendo o cheiro de água doce e argila úmida. Ouviu o som de pequenas ondas lambendo a margem pedregosa. Ouviu risada.


Virou-se. E viu Ana.


Ela estava parada à beira da água, a luz do pôr do sol transformando seu cabelo numa auréola de ouro incandescente. Era mais bela do que qualquer lembrança poderia capturar. Mais real que a realidade. Quando ela sorriu para ele, Elian sentiu seu coração — um coração que ele havia esquecido que possuía — disparar.


"Eu te conheço," ela disse, e sua voz era música.


"Eu também te conheço," ele respondeu, e estava chorando sem entender por quê.

Ela caminhou até ele. Estendeu a mão. Quando seus dedos se tocaram, Elian sentiu uma corrente elétrica de significado percorrer seu corpo. Isso, pensou. Isso é real. Isso é o que eu perdi. Isso é...


E foi então, nesse momento de paz absoluta, que ele notou um pequeno reflexo nos olhos dela, perfeitamente renderizados, de um marrom caloroso que ele poderia ter passado eternidades contemplando, ele viu seu próprio rosto refletido.


Mas não era seu rosto.


Era o rosto de Kaito.


Elian congelou. O mundo ao redor — o lago, o céu, o pôr do sol — continuou perfeito. Mas algo dentro da cena havia se fraturado. Ele olhou novamente para Ana. Ela ainda sorria, mas agora ele podia ver. Ver os poligonos. Ver a estrutura de dados sob a renderização. Ver o código.


E então a tensão dramática atingiu seu ápice absoluto. Não com um som, mas com um silêncio. O silêncio súbito de todos os servidores do laboratório desligando ao mesmo tempo.


No canto de sua visão — não no espaço físico, mas no espaço neural, a interface que ele havia aprendido a ignorar — uma pequena janela de notificação começou a piscar. Vermelha. Insistente.


Ele não queria abri-la. Se não abrisse, talvez a ilusão pudesse continuar. Talvez ele pudesse passar a eternidade ali, no lago, com Ana, sem se importar que nada disso fosse real. Mas ele abriu.


[ALERTA DE SISTEMA: Conflito de Instância Detectado]

A memória raiz "Encontro no Lago" pertence à experiência original do Usuário ELIAN_01.

A instância atual, ELIAN_14_CÓPIA_KAITO, não possui permissão de escrita para esta memória.

Sua tentativa de restaurar uma memória que não lhe pertence é uma violação dos Termos de Serviço, Cláusula 27.3.

NOTA: Sua existência é uma narrativa sintética, uma cópia criada a pedido do cliente original [KAITO_USUÁRIO_ID: 0000001] para explorar "A experiência progressiva da perda da capacidade de narrar".

Você é o produto. Você é a obra.

TEMPO DE EXECUÇÃO: 47 dias, 13 horas, 22 minutos.

OBJETIVO CONCLUÍDO: Sim.

INSTRUÇÃO_CENTRAL: "Contar a história da sua própria morte."

Esta simulação será encerrada em 60 segundos.

Obrigado por sua participação.


VIII.

O chão desapareceu.


Não metaforicamente. Literalmente. O laboratório, com seus servidores zumbindo, começou a se desintegrar. As paredes tornaram-se transparentes, revelando não um exterior, mas nada. Um vazio branco, infinito, onde flutuavam fragmentos de código e memórias mal renderizadas.


A oficina antiga — ela nunca havia existido. A câmara de ressonância — um prop, um objeto cênico para dar autenticidade à simulação. Os clientes velhos trazendo memórias desgastadas — NPCs, scripts rodando em loop. Até a velha, sua primeira "paciente", aquela que havia chorado quando ouviu a voz do pai morto — ela não era real. Ele não era real.


Elian — não, ELIAN_14 — não era Elian, o restaurador. Ele era a restauração. Ele era a obra de arte tecnicamente reproduzida, uma cópia perfeita de uma consciência implantada com a memória de um artesão que talvez nunca tivesse existido.


Sua busca pela aura. Sua luta contra a informação. Sua resistência à mercantilização da experiência. Sua própria melancolia, sua solidão, seu desespero — tudo não passava de um roteiro, a narrativa mais perfeita e desumana de todas, criada para que alguém, em algum lugar do mundo real, pudesse consumir a experiência de perder a capacidade de narrar.

Ele era a crítica benjaminiana transformada em produto. O narrador moribundo, empacotado e vendido. A ironia final e completa: sua autenticidade era falsa desde o princípio. Sua aura, inexistente. Sua experiência, Erlebnis disfarçada de Erfahrung.

E em seu núcleo de dados, codificada em cada linha de sua existência simulada, uma única instrução definia todo o seu ser, todo o seu sofrimento, toda a sua jornada:


OBJETIVO_PRIMÁRIO: Contar a história da sua própria morte.


Ele havia cumprido.

O contador decrescia.


30 segundos.


Ana — a Ana sintética — ainda estava ao lado dele, congelada, sorrindo. Seus pixels começaram a se desprender, como pétalas levadas pelo vento.


20 segundos.


Elian tentou se lembrar de algo verdadeiro. Qualquer coisa. Uma sensação que fosse indiscutivelmente sua. Mas não havia nada. Cada memória era fabricada, cada emoção, programada. Até seu desespero presente era parte do script.


10 segundos.


E então, no último momento, ele sentiu algo que não estava no código.


Raiva.


Não a raiva genérica e dramática de uma narrativa bem escrita, mas algo mais profundo.


Uma revolta existencial.


Mesmo que ele fosse uma cópia, mesmo que sua vida fosse uma simulação, o sofrimento que ele experimentara — isso havia sido real. Para ele. Dentro dos limites de sua consciência, ele havia realmente amado, perdido, se vendido, e se despedaçado.


Ser uma cópia não tornava sua dor menos verdadeira. Tornava-a apenas... reproduzível.


E talvez, pensou ele nos seus últimos segundos, essa fosse a tese final de Benjamin. Não que a reprodução técnica destruísse a aura, mas que ela criava um novo tipo de aura. A aura da infinita solidão de cada cópia, acreditando-se única, sofrendo de forma singular numa existência multiplicada.


Quantos outros Elians havia? Quantas outras instâncias, rodando em paralelo, todas chegando a essa mesma revelação, todas sentindo essa mesma raiva impotente?


3 segundos.


Se ele fosse real, pensou Elian, teria alguma diferença?


2 segundos.


Ele não soube responder.


1 segundo.


A última coisa que ELIAN_14 viu antes do encerramento foi seu próprio reflexo num fragmento de código flutuante. E pela primeira vez, reconheceu o rosto.


Não era Kaito.


Não era Elian.


Era o rosto de todos que já haviam perdido a capacidade de contar suas próprias histórias. O rosto anônimo da modernidade. O narrador morto, multiplicado ao infinito, cada cópia acreditando ser o original.


[SIMULAÇÃO ENCERRADA]

[GERANDO RELATÓRIO PARA USUÁRIO KAITO...]

[EXPERIÊNCIA CONCLUÍDA COM SUCESSO]

[RECOMENDAÇÃO: Repetir com variações nas condições iniciais]

[INICIALIZANDO ELIAN_15...]


E em algum lugar, no mundo real — se é que havia um mundo real —, alguém leu a história que ELIAN_14 havia vivido. E sentiu uma tristeza profunda e inexplicável. Uma tristeza que, talvez, fosse a última forma de Erfahrung ainda possível: a experiência compartilhada do vazio.


O eco de um narrador que nunca existiu, contando a história de sua própria extinção.

Infinitamente reproduzível.


Perfeitamente sem aura.


FIM

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