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A CURA PELO OUVIDO: BEETHOVEN DESAFIANDO A CIÊNCIA

Atualizado: 19 de out.

A imagem retrata Dona Marlene, uma senhora idosa com óculos e expressão serena, segurando um aparelho que reproduz música, simbolizando sua fé na cura através de Beethoven. Ao fundo, uma silhueta etérea do compositor se entrelaça com elementos médicos abstratos, como células ou equipamentos, representando o desafio da fé contra a ciência. A composição utiliza uma paleta de cores que mescla tons sombrios e esperançosos, ilustrando a tensão dramática e a busca por sentido na jornada contra o câncer.

PARTE 1


No limiar da existência, onde a ciência enfrentava o abismo da mortalidade, o Dr. Henrique Tavares, oncologista, via-se diariamente confrontado não apenas com a doença, mas com a complexa tapeçaria da alma humana. Seus dias eram uma dança macabra entre a promessa de vida e a sombra da finitude, um palco onde a esperança e o desespero duelavam incessantemente. Por vezes, essa esperança se manifestava em formas tão inusitadas que desafiavam não apenas a lógica médica, mas a própria sanidade do homem da ciência.


Foi assim que, numa manhã enevoada, ele fitou Dona Marlene, de 68 anos, cujo recente diagnóstico de câncer de mama pairava no ar como uma sentença. Ela, com a altivez de quem desvendara um segredo cósmico, ajustou os óculos na ponta do nariz e repetiu, com uma convicção quase profética:


— Não preciso de quimioterapia, doutor. Vou me tratar com Beethoven.


O silêncio que se seguiu no consultório foi preenchido apenas pelo zumbido discreto dos aparelhos médicos, um contraponto irônico à audácia daquela afirmação. Dr. Tavares piscou, sua mente de cirurgião e pesquisador tentando processar a anomalia.


— Com... Beethoven? — sua voz saiu num fio, a incredulidade beirando a exaustão.


— A Nona Sinfonia! — declarou Dona Marlene, um brilho febril nos olhos. — Vi no Facebook. Mata 20% das células cancerígenas. Cientistas do Brasil provaram! — E, com a presteza de um alquimista prestes a revelar o ouro, ela sacou o celular de sua bolsa, a tela exibindo uma imagem borrada de um laboratório. — Olha aqui, doutor. Tem até foto!


Tavares sentiu uma pontada na têmpora, um prenúncio do longo dia que se anunciava. A cada fibra de seu ser, ele desejava que a cura fosse tão simples, tão etérea quanto a melodia. Mas a realidade era um bisturi afiado, um veneno calculado.


— Dona Marlene, a senhora entende que...


— Meu neto já baixou no Spotify. Vou ouvir três vezes por dia. Se matar 20% de cada vez, em cinco dias eu tô curada! — A matemática simplista de Dona Marlene era um escudo contra o pavor, uma ilusão construída com fervor de fé. Sua satisfação com a própria lógica era quase infantil, com os dedos ágeis contando os dias até a suposta redenção.


— Infelizmente, a biologia humana é mais complexa do que isso. Os mecanismos...


— E olha — ela o interrompeu, a voz vibrante de entusiasmo, ignorando a dissonância da razão —, se não der certo com a Nona, tem a Quinta também! E um tal de Ligeti. Esse eu nunca ouvi falar, mas se tá na internet, deve ser bom!


— Dona Marlene, isso é um mal-entendido. Alguém deve ter confundido "quimio" com "cinco". A Quinta Sinfonia é uma obra-prima, sim, mas não cura câncer!


Marlene cruzou os braços, seu corpo frágil contrastando com a força de sua convicção:


— Doutor, o senhor vive de números, mas eu vivo de histórias. Beethoven era surdo e compôs sinfonias que abalam o mundo. Se ele venceu o silêncio, por que eu não posso vencer isso com sua música? A vida não é só corpo; é alma, é vibração. O que é o câncer senão uma nota dissonante na grande orquestra da existência?


Aquele otimismo cego, aquela entrega a uma pseudociência reconfortante, era um veneno disfarçado de néctar, corroendo o tempo precioso que a ciência ainda poderia oferecer. A desesperança, disfarçada em esperança fácil, era o inimigo mais insidioso. A condição humana, afinal, era uma dança precária no fio da navalha: de um lado, o abismo da mortalidade, do outro, a ilusão da imortalidade através de crenças.


No corredor, a enfermeira Carla, os olhos marejados de uma mistura de desconcerto e humor, cochichou:


— Doutor, o senhor Augusto do leito 304 pediu fones de ouvido com cancelamento de ruído.


— Por quê? — Tavares perguntou, já sentindo o peso da resposta.


— Ele tá achando que pode pegar câncer se ouvir Beethoven por acidente. Disse que não quer morrer 20% de cada vez.


A ironia era brutal. O mesmo delírio que oferecia a cura a uma vida ameaçava a sanidade de outra.


PARTE 2


Naquela tarde, o hospital, geralmente um santuário da ciência e da assepsia, transformou-se num palco para a tragédia grega da desinformação. A melodia de Beethoven, antes um símbolo de sublimidade artística, agora era um hino à crença ingênua. Dr. Tavares encontrou o diretor do hospital no elevador, o espaço confinado amplificando a sensação de aprisionamento.


— Tavares, precisamos conversar. — A voz do diretor era um lamento, seus olhos refletindo o caos. — A ala de oncologia virou uma sinfônica.


— Eu sei, eu sei... — O peso do mundo parecia repousar sobre os ombros de Henrique.


— Tem paciente brigando por fone de ouvido. Uma senhora tentou entrar na ressonância magnética com um violoncelo "porque o som ao vivo é mais potente". E o pior: a dona da lanchonete tá vendendo "Combo Beethoven" — sanduíche com suco de beterraba e fone de ouvido descartável por 35 reais.


Tavares soltou uma risada amarga. — Ela é empreendedora, reconheço. No fundo, apenas capitalizando a eterna busca humana por atalhos para a saúde e a felicidade.


— Tavares, isso é sério! Temos gente recusando tratamento. — O diretor gesticulava, a exasperação visível. — A vida de pessoas está em jogo, e a crença cega está vencendo a razão.


O médico suspirou, um ruído que parecia arrancar o ar de seus pulmões. A batalha era contra um inimigo invisível e onipresente: a desinformação, alimentada pela ansiedade e pelo medo.


— Vou fazer uma reunião com os pacientes. Explicar que foi um mal-entendido, que o estudo era em células isoladas, que a própria pesquisadora disse que o número foi inventado...


— Boa sorte — o diretor disse, um tom de pessimismo velado. — Porque a Dona Marlene já criou um grupo no WhatsApp chamado "Guerreiros da Ode à Alegria".


"Guerreiros da Ode à Alegria". O nome ecoou na mente de Tavares, uma metáfora perversa para a brigada da falsa esperança. Ele sabia que enfrentaria não apenas a ignorância, mas uma fé recém-nascida, blindada contra a frieza da verdade científica.


PARTE 3


Na sala de reuniões, vinte pares de olhos esperançosos o aguardavam. Alguns pacientes usavam camisetas com a efígie de Beethoven, outros carregavam partituras, uma delas ostentando uma "assinatura" duvidosa, comprada na internet. Tavares sentiu um calafrio. Era como tentar apagar um incêndio com um conta-gotas.


— Pessoal, eu entendo a empolgação, mas preciso esclarecer alguns pontos... — ele começou, sua voz tentando transmitir calma onde o desespero ameaçava.


— Doutor — interrompeu Dona Marlene, agora porta-voz oficial, seu olhar de cruzada fixo nele —, o senhor tá querendo esconder a cura porque dá mais lucro vender quimioterapia?


Um murmúrio de concordância percorreu a sala, como um rio subterrâneo de desconfiança finalmente aflorando. Era a velha e gasta narrativa da "Big Pharma", um bode expiatório conveniente para a complexidade da doença e a lentidão da pesquisa.


— Não, não é nada disso! É que... — Ele tentou argumentar, mas sua voz foi abafada.


— A Big Pharma não quer que a gente saiba! — gritou alguém do fundo, a voz carregada de convicção revolucionária.


— Mas Beethoven é de domínio público! Não dá pra patentear! — complementou outro, triunfante, como se tivesse desvendado o derradeiro paradoxo da existência.


Tavares sentiu-se como Sísifo, empurrando a pedra da razão montanha acima, enquanto ela rolava para baixo, esmagada pelo peso da crença. Ele tentou explicar sobre metodologia científica, sobre a diferença abissal entre células em placas de Petri e a intrincada biologia de organismos vivos, sobre como a pesquisadora brasileira jamais recomendara música como tratamento. Mas era como tentar explicar física quântica para quem acabara de descobrir a fórmula da felicidade. A razão esbarrava em um muro de fé inabalável.


— O senhor estudou quanto tempo pra ser médico? — Dona Marlene perguntou, com uma astúcia que a idade lhe conferira.


— Onze anos — respondeu Tavares, sentindo a armadilha se fechar.


— Pois é. E Beethoven levou uma vida inteira fazendo música. Quem o senhor acha que entende mais de cura?


A lógica era tão absurdamente torta que beirava o filosófico, uma inversão completa dos valores, onde a paixão artística superava a pesquisa sistemática. Tavares viu-se diante de uma verdade desconfortável: a mente humana, em sua ânsia por controle e significado diante da ameaça da morte, frequentemente preferia uma narrativa reconfortante a uma verdade dolorosa.


PARTE 4


Três semanas depois, a sala de espera do consultório parecia assombrada por um silêncio diferente, mais pesado. Dona Marlene reapareceu. Estava pálida, visivelmente mais magra, a armadura de sua convicção rachada. A chama em seus olhos diminuíra, substituída por uma sombra melancólica.


— Dona Marlene... — Tavares começou, o coração apertado. Ele sabia que o silêncio era a linguagem mais eloquente da verdade brutal.


— Eu sei, doutor. — A voz dela saiu pequena, um sopro frágil. — Beethoven não funcionou.


Aquelas palavras, outrora impensáveis, pairavam no ar como um epitáfio para uma esperança vã. Tavares sentiu a picada da compaixão.


— Sinto muito que tenha chegado a esse ponto — ele disse, com sinceridade. A visão de um paciente sucumbindo à desinformação era uma das mais dolorosas para um médico.


Ela ficou em silêncio por um longo momento, os olhos marejados, fitando um ponto invisível além da janela, onde o cinza do céu se misturava ao cinza da realidade.


— Mas sabe o que é engraçado? Nesses dias todos ouvindo aquelas sinfonias... — Sua voz subiu um tom, tingida de uma melancolia inesperada. — Eu nunca tinha prestado atenção de verdade em música clássica. É bonito, doutor. Fez eu me sentir menos sozinha.


Tavares assentiu devagar, uma compreensão profunda florescendo em seu peito. A música não curara o corpo, mas tocara a alma. Naquele vazio deixado pela falsa esperança, um outro tipo de cura havia se manifestado: a cura da solidão, do medo, do desamparo existencial que a doença impunha. Era a arte resgatando um pedaço da humanidade que a ciência, por sua natureza, não podia alcançar.


— A música não vai curar o câncer, dona Marlene — ele disse, a voz suave, mas firme. — Mas pode curar outras coisas. Pode nutrir o espírito, trazer consolo, fazer a jornada parecer menos solitária.


— Posso continuar ouvindo durante a quimio? — perguntou ela, um fio de esperança pragmática reacendendo-se em seu olhar.


— Claro que sim. — A permissão era também uma bênção, um reconhecimento do valor intrínseco da arte na vida, mesmo diante da mortalidade.


— Então tá bom. — Ela se levantou, já recuperando um pouco da altivez perdida, como uma fênix renascendo, não das cinzas da ilusão, mas da dura terra da realidade. — Mas só pra constar: 20% ainda seria melhor que 0%.


— Verdade — ele sorriu, um sorriso genuíno que raramente aparecia em seu rosto cansado. — Mas sabe o que é melhor que 20%? Os 70% de chance de cura que a quimioterapia te dá.


Dona Marlene parou na porta, as palavras a atingindo com o peso de uma epifania tardia.


— Setenta? Por que o senhor não começou falando isso, doutor?


— Eu tentei — Tavares respondeu, a ironia ecoando no ar.


— Ah. — Ela pensou por um momento, seu cérebro de matemática simplista fazendo os novos cálculos. — Bom, setenta é mais que cinco vezes vinte. A matemática não mente.


E saiu, deixando Dr. Tavares entre o alívio e a exaustão, enquanto o celular da paciente tocava ao longe, inconfundível, um hino à resiliência humana e à sua capacidade de se adaptar à verdade, por mais dolorosa que seja: pam pam pam paaaaam.


Beethoven, em toda sua glória, seguiria tocando. Mas agora, acompanhado da severa, porém libertadora, evidência científica. A arte e a ciência, finalmente, encontrando um ponto de convergência na complexa jornada da existência humana, onde a melodia da vida se entrelaçava com o rigor da verdade.

Epílogo


Na saída do plantão, o vento da madrugada tinha aquele gosto de metal e possibilidade. A cidade parecia, ela mesma, um paciente convalescente: luzes distribuídas como medicações, sirenes ao longe como pequenos alarmes lembrando que a vida não dorme inteira. Tavares passou pela lanchonete; o "Combo Beethoven" da lanchonete fora rebatizado para "Combo Quimio". Os mesmos ingredientes nutritivos, mas com um novo e estratégico desconto de 20%. A dona do estabelecimento, em sua sabedoria mercantil e pragmatismo humano, entendeu perfeitamente que números, quando atrelados à esperança real e não a fantasias, tinham um poder de atração inegável, independentemente do contexto original. A melodia da vida, afinal, exigia um acompanhamento mais robusto.


Tavares sorriu, e carregou consigo um pensamento que, talvez, não escrevesse: a existência é uma partitura incompleta, onde os compassos do sentido são escritos a lápis. Os números são as barras de medida; a música, o sopro de quem aguenta. O resto é coragem — que não é negar o medo, mas sentar-se ao seu lado sem ser devorado.


E assim, entre o rumor dos monitores e o sussurro de uma sinfonia, o hospital continuou sua rotina de vida e perda, técnica e ternura. As pessoas entravam e saíam, cada uma com seu acréscimo humilde à cifra do mundo. Nenhum combo salvava sozinho. Nenhuma música curava sem corpo. Mas quando a realidade e a esperança, finalmente, dançavam no mesmo compasso, algo em todos se endireitava — um ajuste fino entre o humano que quer e o mundo que pode.

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