O Palácio de Espelhos Quebrados: Sergei Sob Quatro Olhares e Dois Platôs
- Sérgio Luiz de Matteo
- 6 de set.
- 12 min de leitura
Atualizado: 13 de set.

(Um conto sobre o Homem dos Lobos e seus intérpretes)
A neve cinzenta de Viena, em 1926, grudava-se às botas de Sergei Pankejeff como um remorso antigo. Não era mais o jovem aristocrata russo que chegara, décadas antes, à Berggasse 19, consumido por fobias e o espectro de lobos brancos pairando sobre uma árvore de Natal. Era um homem de meia-idade, as marcas do tempo e da melancolia profundas no rosto, carregando consigo não apenas a mala surrada, mas o fardo inextricável de ter se tornado "o" Homem dos Lobos – um caso, um enigma, um texto sagrado da nascente psicanálise. Desta vez, porém, seu peregrinar analítico não se limitaria ao consultório sombrio e repleto de antiguidades do Professor Freud. O próprio destino, ou talvez uma cruel ironia do inconsciente, o conduziria por um labirinto de interpretações, onde seu sonho primordial seria dissecado por seis mentes brilhantes e radicalmente distintas.
Primeiro Espelho: O Arqueólogo da Alma – Sigmund Freud (1926, Berggasse 19)
O ar no consultório era denso, impregnado do aroma de charutos, couro envelhecido e pó de estátuas egípcias. Freud, mais velho, a barba grisalha meticulosamente aparada, os olhos por trás dos óculos de aro fino penetrantes como bisturis, observava Sergei. O divã era uma nau frágil navegando em mares psíquicos tempestuosos.
“Então, Herr Pankejeff,” a voz de Freud era um baixo rouco, sereno, “a sombra do pinheiro natalino ainda o assombra? Os lobos continuam a observar, silenciosos?”
Sergei contorceu-se no divã, como se a lembrança física o ferisse. “Sim, Herr Professor. Menos frequente, mas… a intensidade. O terror de ser devorado por aqueles olhos brilhantes, imóveis, na escuridão… e a janela abrindo-se sozinha… o vento gelado…” Sua voz sumiu num sussurro.
Freud inclinou-se para frente, os dedos entrelaçados. “Voltemos ao cerne, à Urszene, a cena primitiva. Sua insistência em vê-la como realidade factual… mas não é disso que se trata, não é? É da fantasia, Herr Pankejeff, da inscrição traumática de um desejo proibido, recalcado com fúria pelo supereu infantil.” Ele fez uma pausa dramática, acendendo um charuto. O fósforo estalou como um pequeno trovão. “O desejo pela mãe, a raiva contra o pai rival, a culpa paralisante. Os lobos… são ele. O pai. O objeto do seu medo e do seu desejo inconsciente de eliminação. Sua imobilidade? A expectativa angustiada da satisfação do desejo edipiano, ou sua punição. A janela que se abre? O portal para o trauma, para a cena da relação parental que sua mente infantil distorceu em algo monstruoso.”
Sergei sentiu um calafrio percorrer sua espinha. A interpretação era familiar, mas sua força lógica, sua capacidade de reduzir o pesadelo vívido a uma equação de pulsões, ainda o atormentava. Era como se Freud escavasse seu cérebro com uma pá de arqueólogo, desenterrando fósseis psíquicos com precisão implacável. “Mas os detalhes, Herr Professor… a brancura dos lobos… a árvore…”
“Detalhes significantes,” interrompeu Freud. “A brancura: a neve da Rússia, as roupas de cama, a pureza da mãe corrompida? A árvore natalina: o símbolo fálico, a celebração que mascara a tensão familiar? Tudo converge, Herr Pankejeff. Tudo aponta para o conflito edípico mal resolvido, cujos tentáculos estrangulam sua vida psíquica até hoje. O tratamento é persistir na rememoração, na associação livre, até que a energia catéctica presa nesse complexo seja liberada e reintegrada.” A fumaça do charuto formava anéis no ar pesado, como pensamentos tomando forma.
Segundo Espelho: A Cirurgiã do Ego – Ruth Mack Brunswick (1927, Um Consultório Mais Claro)
Dois anos depois, em um consultório mais claro, menos opressivo, mas não menos intenso, Sergei encontrava Ruth Mack Brunswick. Discípula próxima de Freud, mas com olhos clínicos próprios, afiados para as fissuras do ego. Ela era mais jovem, sua energia mais contida, mas sua inteligência era um foco luminoso.
“Sergei,” ela começou, dispensando formalidades, “o Professor Freud desbravou o território do id, o inconsciente profundo onde o sonho dos lobos nasceu. Mas você veio a mim porque o terreno da sua realidade atual ainda está minado, não está? As depressões, as dificuldades relacionais, essa sensação de… falsidade, de não ser inteiro.”
Sergei assentiu, aliviado por alguém ver além do famoso sonho. “Sim, Dra. Brunswick. É como se eu vivesse à sombra daquele sonho, mas o presente… o presente é uma paisagem árida.”
Ruth inclinou a cabeça, estudando-o. “Freud descobriu a origem vulcânica, mas a erupção contínua deformou a paisagem do seu ego. Vejo em você, Sergei, não apenas sequelas da neurose infantil, mas uma luta borderline – uma fragilidade na estruturação do ego, uma dificuldade em manter os limites entre si e o outro, entre fantasia e realidade.” Ela fez uma pausa. “O sonho dos lobos foi o terremoto inicial. Mas as réplicas? A sua relação transferencial com Freud, por exemplo. Intensa, ambivalente… quase deliroide em sua dependência e depois em sua rejeição. Você não se agarrou a ele como salvador? E depois não o transformou, em sua raiva, num perseguidor?”
Sergei corou. Era verdade. “E os lobos… como vê o sonho agora?”
“Os lobos,” Ruth respondeu com clareza cirúrgica, “são, sim, representações do pai e da cena primária, como Freud postulou. Mas sua imobilidade, seu olhar hipnótico… também falam de sua paralisia psíquica diante do conflito. Falam da sua dificuldade em integrar pulsões agressivas e libidinais de forma adaptativa. O tratamento, Sergei, precisa focar no aqui e agora, no fortalecimento do ego, na elaboração das relações de objeto atuais – inclusive a nossa. Precisamos reparar os danos estruturais causados pelo trauma inicial e pelas defesas frágeis que você ergueu.” Sua voz era firme, um antídoto contra o nevoeiro depressivo de Sergei. Ela via as rachaduras na fundação que Freud localizara no subsolo.
Terceiro Espelho: O Decifrador do Simbólico – Jacques Lacan (1952, Paris, Um Apartamento Austero)
Paris, décadas depois. A guerra passara, deixando cicatrizes mais profundas do que as de Sergei. O homem que entrava no apartamento minimalista de Jacques Lacan era um espectro mais desgastado ainda. Lacan, magnético, intenso, seus olhos escuros queimando com o fogo do intelecto, parecia mais um sumo sacerdote do que um médico.
“Bonjour, Sergei,” Lacan cumprimentou, sua voz um instrumento de precisão e ambiguidade. A atmosfera era carregada de tabaco e conceitos densos. Não havia divã, apenas duas cadeiras frente a frente – um duelo de significantes. “Então, o infame sonho dos lobos brancos. O casus belli da psicanálise freudiana. Mas Freud, mon cher, ficou preso ao imaginário, ao drama edípico domesticado. Ele buscou um significado último, uma verdade biográfica. Um erro fundamental.”
Sergei sentiu-se deslocado. “O que então, Doutor Lacan?”
“O Real!” Lacan exclamou, gesticulando. “O sonho é uma mensagem do Outro, escrita na linguagem do inconsciente, que é estruturado como uma língua. Os lobos não são coisas, não são representações literais do pai ou da mãe. São significantes puros! ‘Lobo’ – loup – um significante que o capturou, Sergei, que o constituiu como sujeito dividido.” Lacan levantou-se, começou a caminhar. “A imobilidade dos lobos? O olhar fixo? Isso é o objet petit a em sua forma mais crua! O objeto causa do desejo, inatingível, que nos paralisa com seu fascínio terrível. A janela que se abre sozinha? A intrusão do Real, do impossível de simbolizar plenamente – a cena sexual parental, sim, mas não como evento, e sim como furo no tecido simbólico.”
Lacan parou diante de Sergei, seu olhar perfurante. “O sonho não é sobre o que aconteceu, Sergei. É sobre o desejo e sua estruturação pela linguagem. O ‘Homem dos Lobos’ é um efeito do significante ‘lobo’ em sua cadeia associativa inconsciente. Seu sofrimento vem de estar preso nessa rede simbólica, alienado no desejo do Outro (os pais, Freud, a própria psicanálise!). A cura? Não é recordar, é reler o texto do inconsciente. É atravessar a fantasia que o significante ‘lobo’ teceu em torno desse objeto *a* hipnótico e aterrorizante. É aceitar que o desejo é sempre desejo do Outro, e encontrar uma forma menos paralisante de lidar com essa falta estrutural.” A interpretação era um turbilhão, desmaterializando a experiência concreta de Sergei em pura estrutura linguística e falta ontológica.
Quarto Espelho: O Caçador de Letras – Serge Leclaire (1968, Um Estúdio Iluminado por Lâmpadas de Mesa)
Anos mais tarde, em outro consultório parisiense, desta vez mais acolhedor, iluminado por lâmpadas que criavam poças de luz, Sergei encontrava Serge Leclaire. Psicanalista lacaniano, mas com uma sensibilidade única para o corpo e o pulsional. Leclaire tinha um ar mais contemplativo, menos oracular que Lacan.
“Sergei,” Leclaire começou, sua voz suave contrastando com a densidade de suas ideias, “Lacan nos ensinou sobre o significante. Mas o sonho dos lobos… ele é mais do que uma rede de significantes. Ele é uma inscrição. Uma inscrição traumática no corpo falante.”
Ele pegou um bloco de papel e um lápis pastel grosso. “Imagine,” ele desenhou linhas abstratas, fortes, quase violentas, “a força bruta da pulsão. Pura energia, indiferenciada, in-suportável para o aparelho psíquico infantil.” Ele desenhou círculos concêntricos sobre as linhas. “Então, vem o trabalho do sonho, da fantasia. Tenta-se ligar essa pulsão, dar-lhe uma forma, um roteiro. Os lobos na árvore… é uma figuração.” Ele escureceu alguns pontos no desenho, criando sombras. “Mas veja, Sergei, essa figuração é frágil, insuficiente. A pulsão de morte – Thánatos – insiste. Ela rasga a trama da fantasia. A imobilidade aterrorizante dos lobos? É o trauma da própria pulsão interrompendo a cena imaginada. É o indizível, o in-figurável, fazendo irrupção.”
Leclaire olhou para Sergei com compaixão intelectual. “O sonho não é apenas sobre o desejo (Freud) ou o significante (Lacan). É sobre a luta titânica para corporificar a pulsão, para encontrar uma ‘letra’ – um traço unário, um significante primordial – que possa, minimamente, suportar sua carga devastadora. ‘Lobo’ foi a tentativa desesperada do seu inconsciente infantil. Mas essa letra ficou manchada, Sergei. Manchada pelo excesso pulsional que ela tentava conter. Sua vida tem sido uma tentativa de encontrar outras ‘letras’, outras formas de inscrever esse excesso sem ser destruído por ele. O trabalho analítico, agora, é perseguir essas outras inscrições, esses traços pulsionais mais sutis, menos catastróficos, que permitam à vida continuar, apesar do buraco negro que o Real da pulsão insiste em manter aberto.” Leclaire via a batalha sangrenta no nível mais elementar da psique, onde a carne encontra o símbolo.
Interstício
A neve de Viena, eterna companheira de Sergei Pankejeff, agora misturava-se com a fuligem e o frenesi de Paris, finais dos anos 1970. O mundo havia virado de cabeça para baixo várias vezes desde seus encontros com Freud, Brunswick, Lacan e Leclaire. Ele era um homem velho, mas o fantasma dos lobos brancos, agora sobreposto pelas camadas interpretativas de seus analistas, ainda pairava, não mais como um terror agudo, mas como uma névoa pesada de significado estagnado. Uma amiga, estudante de filosofia, insistiu: "Sergei, você precisa conhecer esses dois, Deleuze e Guattari. Eles estão falando de desejo de um jeito que… que explode tudo. Talvez exploda seus lobos também."
Foi assim que Sergei se encontrou diante de uma porta em um prédio modesto no Quartier Latin, atrás da qual fervilhava uma energia intelectual tão densa quanto a fumaça de Gauloises que escapava pelas frestas.
Platô 1: A Livraria Caótica – Encontro com Félix Guattari (1977, Uma Livraria Anarquista)
O primeiro encontro foi com Félix Guattari, não em um consultório, mas no meio do caos criativo de uma pequena livraria anarquista que ele frequentava como um segundo escritório. Guattari, uma figura elétrica, gestos rápidos, olhos brilhando com uma inteligência inquieta e prática, cercado por panfletos, livros abertos em várias línguas e um grupo de jovens discutindo fervorosamente.
"Ah! O Homem dos Lobos!" Guattari exclamou, não com a reverência do caso clínico, mas com o interesse de um etólogo encontrando uma espécie rara. "Sergei, não é? Venha, venha! Ignore a bagunça. Bagunça é produtiva!" Ele arrastou duas cadeiras para um canto ligeiramente menos ocupado, perto de uma pilha de livros sobre esquizoanálise e jardins comunais.
Sergei sentiu-se imediatamente deslocado da atmosfera claustrofóbica dos consultórios anteriores. Aqui respirava-se ar livre, mesmo dentro de quatro paredes cobertas de estantes. "O senhor… sabe do meu caso?" perguntou Sergei, hesitante.
"Saber? Freud, Lacan… toda a indústria psicanalítica construiu um monumento sobre você, meu caro!" Guattari riu, um som rouco e sincero. "Um monumento ao Édipo, ao significante-mestre, ao inconsciente como teatro de sombras! Mas nós, com Gilles, estamos interessados em outra coisa: o inconsciente como fábrica, Sergei! Como produtor de desejo puro, antes de ser capturado, organizado, reprimido pela família, pela sociedade, pela própria psicanálise!"
Sergei arregalou os olhos. "Desejo puro? Mas os lobos… o terror…"
"Terror? Sim, claro!" Guattari concordou, acendendo outro cigarro. "Mas o terror é um efeito, não a causa! Veja o que fizeram com seu desejo, Sergei. Freud o reduziu ao papai-mamãe-bebê, uma tragédia grega em miniatura. Lacan o trancou numa jaula de linguagem, onde você só pode latir o desejo do Outro! Mas seu sonho… aqueles lobos brancos, imóveis, hipnóticos… isso é potência! Potência intensa, bloqueada!"
Guattari inclinou-se para frente, sua voz baixando para um sussurro conspiratório. "Imagine os lobos não como figuras do pai ou significantes. Imagine-os como afetos puros! Um enxame de sensações: o branco cegante, o frio cortante da janela aberta, o silêncio ensurdecedor, a imobilidade paralisante. Isso é o desejo antes de ser contado uma história edípica! É um agencement de forças, uma máquina desejante funcionando a pleno vapor… e então BAM! Capturada. Codificada como ‘cena primária’, ‘castração’, ‘falo’! Seu desejo foi territorializado naquele drama familiar, e você ficou preso, como um disco riscado, repetindo a neurose."
Sergei sentiu um frio diferente. Não o terror antigo, mas uma vertigem de possibilidade. "Então… os lobos não são um problema a ser interpretado?"
"Interpretado? Não! Experimentado de novo! Mas de outro jeito!" Guattari bateu na mesa, fazendo alguns livros caírem. "Precisamos desterritorializar seu desejo, Sergei! Soltá-lo das amarras edípicas e significantes! Talvez os lobos sejam uma máquina de velocidade e caça, presa na imobilidade. Talvez o branco seja uma luz para algo novo, não um fantasma do passado. Você precisa encontrar linhas de fuga! Construir corpos sem órgãos onde essas intensidades possiam fluir sem se fixar naquele roteiro miserável de culpa e medo!"
Platô 2: O Apartamento Nômade – Encontro com Gilles Deleuze (1978, Um Estúdio com Mapas nas Paredes)
Algumas semanas depois, Sergei foi recebido por Gilles Deleuze em seu apartamento-estúdio. O ar era mais contido que o de Guattari, mas não menos intenso. Paredes cobertas por mapas geológicos, diagramas de plantas carnívoras, esboços de rostos expressivos. Deleuze, com seus óculos grossos e ar de profunda concentração, parecia um cartógrafo de mundos interiores desconhecidos.
"Sergei Pankejeff," disse Deleuze, sua voz suave mas carregada de uma precisão cortante. "Félix falou de nosso encontro. Fascinante. Você é um verdadeiro rizoma involuntário." Ele apontou para um complexo diagrama na parede, raízes entrelaçadas formando uma rede sem centro. "Freud, Lacan, os outros… eles tentaram fazer de você uma árvore. Uma raiz única (o Édipo, o significante ‘lobo’) da qual brotam todos os galhos do seu sofrimento. Mas você… você é mais como isso." Ele tocou o rizoma no mapa. "Multiplicidade. Conexões laterais, subterrâneas, imprevisíveis."
Deleuze caminhou lentamente, como se pensasse com os pés. "Seu sonho dos lobos não é uma janela para um trauma original. É um platô de intensidade. Um momento onde uma constelação de forças – visuais (o branco, os olhos), auditivas (o silêncio, o vento), cinestésicas (a imobilidade, a queda potencial) – atingiu um nível de condensação insustentável, e cristalizou naquela imagem terrível. Os lobos são o corpo que esse platô de afetos encontrou para se expressar. Não sua causa."
Sergei sentia o chão conceitual tremer sob seus pés. "Mas por que lobos? Por que aquele corpo?"
"Por acaso? Por ressonância? Porque a cultura russa tem lobos? Porque você viu um livro ilustrado?" Deleuze encolheu os ombros. "O ‘porquê’ final é menos importante que o como e o o que. Como essa imagem funciona em você? Ela paralisa (como Lacan viu, mas atribuindo ao significante). Ela reduz seu mundo a um único ponto de terror. É uma imagem molar, pesada, totalizante. O que Félix e eu propomos é uma micropolítica do desejo. Em vez de se fixar nessa imagem molar, nos lobos como unidade de horror, dissoque-a."
Deleuze parou diante de Sergei, seus olhos ampliados pelos óculos pareciam ver através dele. "Decomponha o platô. O branco: pode ser a neve da infância, mas também a tela em branco para pintar algo novo? O olhar fixo: pode ser terror, mas também atenção extrema, fascínio por algo que ainda não existe? A imobilidade: paralisia, mas também potencial energia acumulada, como uma mola? A janela aberta: invasão do Real, mas também uma linha de fuga, uma passagem para fora daquele quarto sufocante?"
Ele fez uma pausa, deixando as perguntas ecoarem. "Seu caminho, Sergei, não é mais a interpretação profunda, a busca da origem perdida. É a experimentação. Criar novos agencements. Conectar-se a outras coisas: a música? A jardinagem? Um coletivo? Qualquer coisa que permita às intensidades presas naquela imagem molar dos lobos – a intensidade do branco, do olhar, do silêncio – encontrarem novos canais, novos corpos para habitar. Tornar-se lobo? Não. Tornar-se imperceptível, fluido, capaz de habitar múltiplos platôs de sensação sem ficar preso em nenhum. É uma cura não pela compreensão, mas pela mutação, pela criação contínua de novos modos de existência."
Epílogo: O Jardim dos Agencements
Sergei Pankejeff não se tornou um militante esquizoanalítico. Nem encontrou uma cura milagrosa. Mas algo fundamental mudou dentro do palácio de espelhos quebrados.
Sentado em um pequeno jardim comunitário nos arredores de Paris, onde ele agora passava tardes cuidando de ervas aromáticas, Sergei olhava para um canteiro de camomila. As flores brancas dançavam levemente ao vento. Branco. Não o branco estático, hipnótico e aterrorizante dos lobos. Um branco múltiplo, vibrante, conectado ao verde das folhas, ao aroma suave, ao calor do sol em sua nuca, ao barulho distante das crianças brincando.
Ele pensou nos mapas de Deleuze, no caos produtivo de Guattari. Os lobos não haviam desaparecido. Mas haviam se desterritorializado. Já não eram uma estátua monolítica de terror no centro de seu psiquismo. Eram agora partículas de sensação – um fragmento de branco aqui, uma sombra de imobilidade ali, um eco de silêncio acolá – que podiam se conectar a outras coisas. Ao toque da terra úmida (contra a paralisia), ao cheiro intenso do tomilho (contra o vazio do silêncio), ao movimento constante das formigas (contra a imobilidade).
Freud lhe dera uma narrativa. Lacan, uma estrutura. Ruth, um diagnóstico do ego. Leclaire, uma batalha pulsional. Deleuze e Guattari lhe deram um kit de ferramentas e um mapa do território do desejo como produção, não como falta. Eles não o analisaram; o convidaram a experimentar-se.
O sonho dos lobos não era mais o centro gravitacional de sua existência. Era um platô entre outros, uma cristalização momentânea de forças que podiam ser desfeitas e refeitas. A cura, ele percebeu, não estava em decifrar o enigma passado, mas em tecer, incessantemente, novos agencements no presente. Em tornar-se um jardineiro de seu próprio desejo, onde as sementes do passado, despidas de seu roteiro fatal, pudessem brotar em formas imprevistas, conectadas ao rizoma vasto e imprevisível da vida.
O Homem dos Lobos respirou fundo, o aroma da terra e das ervas enchendo seus pulmões. Pela primeira vez em décadas, o ar não cheirava a neve antiga ou a poeira de arquivo psicanalítico. Cheirava a possibilidade. E, num canto remoto de sua mente, os lobos brancos, livres da função de monstros ou significantes, pareciam finalmente poder descansar, dissolvendo-se lentamente no fluxo multicolorido do devir.



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