A ENCARDENADORA DE SILÊNCIOS
- Sérgio Luiz de Matteo
- 22 de ago.
- 15 min de leitura
Atualizado: 23 de ago.

1 Isadora e a Arquitetura da Solidão
Na baía onde o tempo se dissolvia em salitre e melancolia, Isadora habitava uma casa que desafiava as leis da física e da razão. Construída sobre destroços de embarcações naufragadas e ancorada por correntes de ferro negro, a estrutura flutuante ondulava conforme as marés da memória. Suas paredes eram uma biblioteca viva: páginas de dicionários Webster de 1847, Larousse definhados pela umidade, Aurélio com definições que mudavam conforme o humor do vento. As palavras, desbotadas pelo sal, formavam uma segunda pele translúcida que filtrava a luz em matizes de sepia e esquecimento.
Há três décadas, desde que fugira de um casamento arranjado em Coimbra — onde seu pai negociara sua virgindade por duas sacas de bacalhau e um tratado de navegação —, Isadora dedicava-se à arte maldita da restauração bibliográfica. Mas seus dedos, ágeis como patas de aranha tecendo destinos, iam além do simples reparo: ela era costureira de silêncios, cirurgiã de palavras amputadas, parteira de segredos que nasciam mortos.
Os clientes chegavam como penitentes em procissão secular. Traziam diários violentados por ciúmes, cartas de amor carbonizadas pelo ódio, testamentos rasurados pelo remorso. Senhora Benedita, a velha açougueira, trouxe as receitas de sua avó — páginas mastigadas por ratos e regadas com lágrimas de cebola e luto. O padre Anselmo, numa tarde de confessionário vazio, entregou-lhe sua Bíblia pessoal, onde havia riscado todos os versículos sobre perdão.
Isadora os reconstruía com fios de seda tingidos nas cores do luto: negro-violeta para as traições, cinza-pérola para as saudades prematuras, branco-ossário para as inocências perdidas. Cada ponto era uma oração sussurrada, cada nó uma pequena ressurreição. Ela suturava almas através do papel, acreditando que, se conseguisse reparar as palavras, talvez pudesse remendar os corações que as escreveram.
Nas noites de lua cheia, quando a casa balançava como um berço gigante e as paredes-dicionário sussurravam definições esquecidas, Isadora entregava-se ao vício secreto: escrevia confissões nas margens dos livros alheios. Com tinta feita de lágrimas e tinta de lula, rabiscava verdades que jamais ousaria pronunciar:
"Amo homens feitos de névoa, que se dissipam ao primeiro raio de sol. Amo porque sei que não ficarão. Porque no amor duradouro há sempre o germe da decepção, e eu prefiro a dor limpa da ausência à agonia lenta da presença que se desgasta."
"Sonho que sou um livro queimado numa fogueira pública, e que minhas cinzas fertilizam um jardim onde crescem árvores cujos frutos são palavras não-ditas."
"Às vezes finjo que meu útero é uma biblioteca, e que todos os filhos que não tive são livros por escrever, dormindo em estantes imaginárias, esperando por leitores que nunca virão."
Ela própria havia se metamorfoseado numa edição rara de si mesma: capa dura de couro curtido pelos anos, lombada rachada pela solidão, páginas amareladas pelo tempo e coladas pelo medo ancestral de ser lida até o fim. Seus olhos, outrora cor de avelã, agora refletiam apenas o cinza-chumbo dos dias nublados. Seus cabelos, antes castanhos como terra fértil, haviam embranquecido prematuramente, tornando-se fios de prata que ela trançava com agulhas de costura, transformando a própria cabeça num alfinheteiro melancólico.
2 O Homem das Marés e o Convite ao Abismo
A chegada de Elias coincidiu com a primeira tempestade de outono, quando o mar regurgitava destroços de navios fantasmas e as gaivotas cantavam réquiem em dialetos extintos. Ele surgiu da neblina como um verso perdido de Camões, carregando uma maleta de madeira de cedro-do-líbano entalhada com constelações que os astrônomos modernos haviam riscado dos mapas celestes por serem impossíveis de localizar.
Elias era geólogo por vocação e vidente por maldição. Estudava o ritmo das marés como outros leem horóscopos, interpretando nas correntes marítimas os presságios do futuro humano. Seus olhos cor de âmbar líquido guardavam mapas de lugares que não constavam em atlas: ilhas que só existiam na imaginação dos cartógrafos românticos, continentes submersos onde as sereias arquivavam os últimos suspiros dos afogados.
Diziam na cidade — sussurros trocados entre pescadores bêbados e vendedoras de peixe — que ele conversava com as correntes submarinas numa linguagem feita de bolhas e ecos. Que previa tempestades pelo sabor da espuma, e que sua sombra, quando projetada sobre a água, assumia a forma de um polvo gigante abraçando o mundo.
Na tarde em que procurou Isadora, o vento soprava de sudeste, carregando cheiro de algas em decomposição e promessas não cumpridas. Ele cruzou a passarela de cordas que ligava a casa flutuante ao cais, e seus passos faziam a estrutura toda oscilar num ritmo hipnótico, como se a própria habitação reconhecesse em Elias um parente distante.
"Vim trazer-lhe um desafio", disse ele, depositando sobre a mesa de trabalho um objeto que parecia pulsar com vida própria: um livro — se é que se podia chamar livro àquela coisa encharcada de água salgada, com capa de couro negro que brilhava como pele de foca morta. "Pertenceu a um náufrago chamado Leônidas Marousia, um bibliotecário grego que se perdeu no mar há exatamente 73 anos."
As páginas, quando Elias as abriu, estavam completamente em branco, mas exalavam um perfume impossível: mistura de tinta fresca, pergaminho medieval e lágrimas de sereia. Ao passar os dedos sobre o papel — um papiro egípcio autêntico, tecido com fibras de lótus e preces aos mortos —, Isadora sentiu uma pulsação que ecoava o seu próprio batimento cardíaco, só que amplificado, como se o livro fosse um coração gigante palpitando dentro de um peito de pedra.
Nas bordas das folhas, visíveis apenas sob luz oblíqua, havia marcas microscópicas: arranhões de unhas desesperadas, manchas que pareciam lágrimas cristalizadas, e pequenas pegadas de caranguejo desenhando hieróglifos indecifráveis. Mais perturbador ainda: gotas de sangue que, mesmo após décadas, permaneciam líquidas, formando mapas de continentes perdidos.
"O que aconteceu com o dono?" Isadora perguntou, mas já pressentia que a resposta mudaria sua vida forever.
Elias fitou o horizonte onde o sol se afogava em magmas de ouro e cobre, e sua voz assumiu o tom profético dos antigos oráculos:
"Leônidas não morreu... pelo menos não da maneira como entendemos a morte. Ele está preso no Labirinto das Marés, um lugar que só se materializa quando a lua está em conjunção com a constelação do Cão Morto — um fenômeno astronômico que ocorre uma vez a cada 37 anos. E você, Isadora, é a única capaz de encontrá-lo."
"Por que eu?" ela questionou, embora soubesse que certas perguntas só têm respostas circulares.
"Porque você passou a vida toda costurando as almas alheias, ignorando os buracos na sua própria. Porque você é, simultaneamente, a doente e o remédio. E porque..." ele hesitou, como quem está prestes a revelar um segredo que pode quebrar o mundo, "...porque Leônidas é você. Ou melhor, é quem você se tornará se continuar fugindo de si mesma."
3 O Labirinto Sob o Farol: Anatomia do Inconsciente
O farol abandonado de Santa Úrsula erguia-se no ponto mais extremo da península como um dedo ósseo apontando acusações ao céu. Construído em 1847 por um arquiteto francês que enlouquecera durante a obra — diziam que ele conversava com os mortos e projetava os cômodos conforme instruções recebidas em sonhos —, o edifício fora desativado após uma série de naufrágios misteriosos: navios que se despedaçavam contra rochas inexistentes, seguindo uma luz que só os condenados conseguiam ver.
Na noite da conjunção, quando a lua nova se alinhava perfeitamente com a constelação do Cão Morto (conjunto de estrelas que os astrônomos modernos negavam existir), o mar recuou além de todos os limites conhecidos. A maré baixou tanto que revelou escadarias de osso de baleia e algas fossilizadas, descendo em espiral hipnótica até profundezas que violentavam as leis da geologia.
Isadora desceu carregando uma lanterna de querosene — presente de herança da avó portuguesa, alimentada com óleo extraído de lágrimas de viúvas — e o diário restaurado de Leônidas. Durante três dias e três noites, ela havia trabalhado na reconstrução do volume, usando técnicas transmitidas oralmente pelas encadernadoras ciganas: fios de seda banhados em água benta e maldita, cola feita com resina de árvores que cresciam em cemitérios abandonados, tinta elaborada com sangue de peixe-lua e esperma de lula gigante.
O milagre acontecera gradualmente: conforme Isadora suturava as páginas, palavras em alfabetos desconhecidos começaram a emergir do papel, como tatuagens aflorando numa pele aquecida. Frases em grego arcaico se misturavam com hieróglifos egípcios, caracteres chineses se entrelaçavam com runas nórdicas, formando uma linguagem universal que apenas o coração sabia decifrar. Entre o texto, esboços surgiam espontaneamente: criaturas com cabeça de peixe e olhos melancólicamente humanos, navios navegando sobre nuvens, mulheres com cabelos de algas abraçando homens translúcidos.
O labirinto não era arquitetura convencional, mas tempo solidificado em forma espacial. Os corredores eram construídos com horas cristalizadas, as paredes erguidas com dias que nunca amanheceram, o teto sustentado por vigas de anos perdidos. Conforme Isadora avançava, os caminhos se reconfiguravam organicamente: às vezes estreitos como veias palpitantes, forçando-a a rastejar entre memórias comprimidas; outras vezes amplos como catedrais submersas, onde ecoavam lamentações em idiomas esquecidos pelos vivos.
Nas paredes, relevos vívidos narravam histórias de náufragos que transcendiam a mera biografia para se tornarem mitologia pessoal:
A Saga de Joaquim, o Comerciante de Sombras: Um homem de negócios que, cansado de vender a alma em prestações, finalmente ofereceu sua sombra inteira em troca de asas de gaivota. Obteve o que desejou, mas condenado a vagar eternamente entre céu e mar, nunca mais conseguindo tocar terra firme ou alcançar o paraíso. Nos relevos, via-se sua silhueta alada projetada sobre as ondas, perseguida pelos credores do inferno e pelos cobradores do paraíso.
A Tragédia de Esperança, a Devoradora de Gritos: Uma mulher que, após perder sete filhos numa epidemia de cólera, engoliu uma pérola contendo o som do primeiro grito humano — o brado de Adão ao descobrir-se expulso do Éden. Desde então, só conseguia falar através de gritos silenciosos, comunicando-se numa linguagem de dor que apenas outras mães enlutadas compreendiam.
A Maldição de Teodoro, o Cartógrafo de Lágrimas: Um explorador que mapeava não territórios, mas os trajetos percorridos pelas lágrimas no rosto humano. Descobriu que cada pessoa possui uma geografia íntima de sofrimento, e que as lágrimas, quando secam, deixam mapas invisíveis que indicam os caminhos para encontrar a alma perdida. Porém, ao tentar mapear as próprias lágrimas, criou um paradoxo temporal que o aprisionou num loop eterno de autoconhecimento.
Após horas de peregrinação — ou talvez fossem décadas; no labirinto, o tempo obedecia apenas às leis da necessidade emocional —, Isadora alcançou o epicentro: A Sala dos Espelhos Líquidos.
4 A Sala dos Espelhos Líquidos: O Museu dos Eus Possíveis
O aposento era uma esfera perfeita escavada no coração da terra, com paredes cobertas por espelhos que não refletiam luz, mas possibilidades. Cada superfície especular continha água salgada em estado de suspensão impossível, formando telas líquidas onde se projetavam as vidas que Isadora poderia ter vivido caso houvesse feito escolhas diferentes nos momentos cruciais da existência.
Espelho da Conformidade - Isadora Casada: Sentada numa mesa de jantar burguesa, cercada por filhos que possuíam seu nariz mas os olhos opacos do marido, sorrindo um sorriso de porcelana rachada enquanto servia um bacalhau que tinha gosto de resignação. Seus cabelos estavam penteados num coque perfeito, suas mãos manicuradas não mostravam traços de trabalho manual, e seus olhos... seus olhos haviam se tornado dois poços secos onde outrora corriam rios de imaginação.
Espelho da Rendição - Isadora Afogada: Flutuando no fundo do mar como uma Ofélia tropicalizada, cabelos esparramados como algas dançando conforme as correntes, abraçada a uma âncora onde alguém havia gravado seu nome com letras góticas. Seu rosto expressava não desespero, mas uma serenidade perturbadora — a paz daqueles que finalmente cessaram de lutar contra a própria natureza.
Espelho da Rebeldia - Isadora Selvagem: Vivendo numa floresta de eucaliptos gigantes, usando roupas tecidas com musgo e fibras de bambu, uma cicatriz em forma de lua crescente decorando sua clavícula como uma joia bárbara. Rodeada por lobos domesticados e corvos que haviam aprendido a recitar poesia, ela passava os dias esculpindo totens de madeira e dançando rituais pagãos sob a lua cheia.
Espelho da Santidade - Isadora Freira: Ajoelhada numa capela minúscula, copiando à mão os evangelhos apócrifos numa caligrafia microscópica, as páginas manchadas de sangue pelos espinhos que usava como pulseira. Seu rosto irradiava uma beatitude doentia, e seus lábios moviam-se constantemente em orações dirigidas a santos inventados por sua própria loucura mística.
Espelho da Revolução - Isadora Guerrilheira: Empunhando uma espingarda cujo cano havia sido entalhado com versos de Che Guevara, liderando um exército de mulheres que combatiam não apenas a ditadura política, mas todas as ditaduras — do casamento forçado, da maternidade obrigatória, do amor romântico como prisão dourada.
Espelho da Loucura - Isadora Internada: Numa camisa-de-força feita de páginas de livros costuradas, escrevendo na parede do hospício com as próprias unhas, criando uma obra-prima de literatura insana que apenas outros loucos conseguiam compreender. Seus olhos brilhavam com a clarividência terrível daqueles que enxergaram a verdade do mundo e foram punidos por isso.
Cada espelho pulsava com uma luz própria, e Isadora percebia que poderia mergulhar em qualquer um deles, abandonar sua vida atual e assumir uma das identidades alternativas. A tentação era quase irresistível — principalmente o espelho da Isadora Selvagem, cuja liberdade primitiva acenava como um paraíso perdido.
Mas foi no fundo da sala, parcialmente oculto por uma cortina de algas fosforescentes, que ela encontrou o espelho mais perturbador: um que não mostrava imagem alguma, apenas um vazio radiante, branco como a página em branco de um livro por escrever.
5 O Náufrago e o Pacto: O Encontro com o Duplo Sombrio
Diante do espelho vazio, acorrentado a uma rocha coberta de mariscos fossilizados que pareciam pequenos crânios de bebês nunca nascidos, estava Leônidas Marousia. Ou o que restara dele.
Seu corpo possuía a transparência inquietante da água parada em cisternas abandonadas — podia-se ver através de sua pele os órgãos internos trabalhando em câmera lenta, como se o tempo escorresse viscoso através de sua anatomia fantasmagórica. No lugar do coração, um relógio de areia onde o tempo fluía ao contrário, e cada grão que subia era um minuto de vida sendo devolvido ao passado.
Sua cabeça, apoiada numa almofada de algas secas, era calva como a de um monge budista, mas a calvície resultava não da renúncia espiritual, mas da ansiedade: ele havia arrancado todos os cabelos durante décadas de meditação forçada sobre os próprios erros.
Suas órbitas abrigavam dois pequenos aquários onde peixes dourados nadavam em círculos infinitos, projetando nos olhos um brilho hipnótico de loucura mansa.
"Você veio consertar minha história?", perguntou ele, com voz que soava como estática de rádio antigo sintonizado numa frequência entre dois mundos. "Cuidado, encadernadora de silêncios... Cada livro que você restaura devora um pedaço da sua alma. Eu mesmo fui como você — um reparador de textos alheios, um costureiro de páginas rasgadas. Até que o labirinto me engoliu inteiro."
Isadora aproximou-se, e percebeu que as correntes que aprisionavam Leônidas não eram de ferro comum, mas de letras do alfabeto fenício forjadas em metal líquido — cada elo era uma palavra, e cada palavra formava uma frase de autoacusação:
"NUNCA FUI CORAJOSO O SUFICIENTE PARA VIVER MINHA PRÓPRIA VIDA"
"PREFERI SER PERSONAGEM SECUNDÁRIO NAS HISTÓRIAS ALHEIAS"
"MORRI VIRGEM DE EXPERIÊNCIAS VERDADEIRAS"
"Como posso libertá-lo?" ela perguntou, embora já soubesse que a resposta transformaria ambos.
"A chave é uma palavra que eu mesmo esqueci", sussurrou Leônidas, e uma lágrima de sua órbita direita pingou no chão, cristalizando-se instantaneamente numa pequena borboleta de sal que voou alguns centímetros antes de se desintegrar. "Uma palavra que resume tudo aquilo que eu fui covarde demais para dizer em vida. Você a encontrará no diário... mas cuidado: ao pronunciá-la, libertará não apenas a mim, mas a todos os eus possíveis que você mantém prisioneiros dentro de si mesma."
Isadora abriu o diário restaurado, e as páginas começaram a brilhar com luz própria. Frases surgiam e desapareciam como ondas bioluminescentes:
"A saudade é um navio que afunda verticalmente, levando consigo não apenas o que foi, mas tudo o que poderia ter sido."
"Nossos medos têm raízes mais profundas que nossas coragens, mas as raízes da coragem, quando finalmente germinam, produzem flores que perfumam gerações inteiras."
"O amor verdadeiro não é aquele que permanece, mas aquele que nos transforma na despedida."
"Vivemos múltiplas vidas simultaneamente — uma para cada pessoa que nos conhece, uma para cada versão de nós mesmos que criamos. A arte está em descobrir qual delas é genuinamente nossa."
"O silêncio é a linguagem dos mortos, mas também a linguagem dos que ainda não nasceram. Entre esses dois grupos, vivemos nós, tentando traduzir o intraduzível."
E finalmente, na última página, escrita numa caligrafia que era simultaneamente a de Leônidas e a sua própria:
"Só é possível escapar do labirinto quando se aceita ser, eternamente, parte dele."
Ao pronunciar essas palavras em voz alta, Isadora sentiu o chão tremer. As correntes que aprisionavam Leônidas começaram a se dissolver, transformando-se em fitas de poeira estelar que subiam em espiral, como se fossem aspiradas por um redemoinho cósmico.
Leônidas sorriu — um sorriso que era também despedida e alívio — e seu corpo começou a desintegrar-se não em cinzas, mas em páginas soltas que se misturaram à água salgada do labirinto. Cada página continha um fragmento de sua vida não vivida, e conforme se dissolviam, as experiências que ele nunca tivera coragem de experimentar se transformavam em possibilidades disponíveis para outros navegadores perdidos.
"Agora você compreende", sua voz ecoou uma última vez antes de se diluir completamente no cosmos. "O labirinto não é prisão — é útero. É o lugar onde as almas se gestam antes de renascer."
6 O Retorno e a Revelação: A Metamorfose do Real
Quando Isadora emergiu das profundezas, carregando o diário que agora pulsava como um coração vivo, descobriu que a cidade havia se metamorfoseado durante sua ausência — ou talvez ela própria houvesse mudado a tal ponto que enxergava a realidade com olhos novos.
As casas, antes simples construções de tijolo e cal, agora possuíam portas feitas de conchas gigantes que sussurravam segredos do oceano para quem soubesse escutar. As janelas haviam se transformado em aquários transparentes onde peixes exóticos nadavam entre cortinas de algas, e os telhados eram jardins suspensos onde cresciam plantas que só floresciam durante os eclipses.
As crianças esquecidas — orfãs da guerra, filhas de marinheiros que partiram e nunca voltaram — brincavam nos becos com criaturas meio peixe, meio sonho, que saltavam da imaginação para a realidade conforme a lua crescia. Elas haviam aprendido a conversar com os fantasmas dos afogados e a dançar cantigas que faziam chover estrelas cadentes sobre o cais.
Elias a esperava no píer, mas sua maleta de constelações extintas agora estava aberta, revelando não instrumentos de geologia, mas um espelho pequeno que refletia não rostos, mas essências. Quando Isadora se olhou nele, viu não sua aparência física, mas um vazio radiante — o mesmo vazio que encontrara no último espelho do labirinto.
"Você não restaurou o diário de Leônidas", disse Elias, e sua voz carregava uma ternura que ela nunca havia ouvido antes. "Você o reescreveu. E ao fazê-lo, reescreveu também sua própria história. O labirinto era a arquitetura do seu medo, e Leônidas, a personificação de tudo aquilo que você temia se tornar caso continuasse vivendo através das histórias alheias."
Naquela noite, pela primeira vez desde a adolescência, Isadora fez algo que considerava impossível: escreveu uma carta para si mesma. Não usou metáforas elaboradas, nem tintas mágicas, nem caligrafia rebuscada. Apenas duas linhas em letra simples, escritas com caneta esferográfica comprada no armazém da esquina:
"Chega de encadernar silêncios alheios. Vamos dançar com nossas próprias palavras não-ditas."
Ela colocou a carta dentro de uma garrafa de vinho comum — não uma garrafa encantada, não um recipiente histórico, apenas uma garrafa vazia de vinho português que encontrou na cozinha — e a lançou ao mar durante a maré alta.
Na manhã seguinte, encontrou a garrafa de volta em sua mesa de trabalho. Impossível? Talvez. Mas o impossível havia se tornado cotidiano desde que ela aprendera a navegar seus próprios labirintos interiores. A mensagem havia mudado. Alguém — ou algo — acrescentara uma linha numa caligrafia desconhecida:
"Traga sua dança ao farol. As criaturas do labirinto querem aprender a rir."

7 Epílogo: A Biblioteca Viva - O Reino dos Possíveis
Isadora jamais restaurou outro livro na vida. Em vez disso, transformou sua casa flutuante numa biblioteca revolucionária onde as histórias não eram apenas lidas, mas encenadas por uma companhia teatral formada pelos seres que haviam emergido do labirinto: náufragos redimidos, fantasmas reconfortados, e todas as versões alternativas dela mesma que haviam aprendido a coexistir harmoniosamente.
A biblioteca não possuía prateleiras convencionais. Os livros cresciam como frutas nas paredes-dicionário, e os leitores podiam colhê-los quando estivessem maduros para absorver determinada história. Havia volumes que só podiam ser lidos durante tempestades, outros que se abriam exclusivamente para corações partidos, e alguns que sussurravam contos diferentes para cada pessoa que os tocava.
Os espetáculos aconteciam todas as noites. A Isadora Selvagem ensinava danças rituais para as crianças esquecidas. A Isadora Guerrilheira declamava poesias de resistência que faziam os pescadores chorar de emoção. A Isadora Freira benzia os livros novos com água benta misturada a lágrimas de alegria. Até mesmo a Isadora Afogada participava, cantando canções submarinas que curavam feridas emocionais ancestrais.
Elias, agora seu companheiro de chá e silêncios confortáveis, havia se revelado não apenas um geólogo, mas um colecionador de constelações perdidas — um homem que dedicava a vida a recuperar estrelas que haviam caído do céu por excesso de melancolia. Juntos, eles ensinavam aos ex-náufragos do labirinto a ler as marés como partituras musicais, a interpretar o vento como poesia oral, e a dançar com as tempestades como quem dança com amantes eternos.
O diário de Leônidas permanecia em exibição no centro da biblioteca, mas protegido por uma redoma de vidro marinho que só se abria para visitantes que houvessem, ao menos uma vez na vida, tido coragem de mergulhar nos próprios abismos interiores. Os turistas e curiosos encontravam apenas páginas em branco. Mas aqueles que haviam navegado seus labirintos pessoais descobriam que, em noites de tempestade, o diário ganhava novas histórias — sempre narrativas de pessoas que haviam aprendido a usar como bússola não a fuga do medo, mas a dança corajosa com ele.
E nas madrugas mais silenciosas, quando até o mar adormecia embalado pelas canções das baleias, Isadora caminhava pela biblioteca contemplando sua criação mais preciosa: um espaço onde as pessoas vinham não para escapar da realidade, mas para descobrir que a realidade possui infinitamente mais camadas do que jamais imaginaram.
Às vezes, sentada na poltrona que havia pertencido à sua avó portuguesa — a única herança que trouxera de Coimbra além da lanterna de querosene —, ela abria um livro em branco e escrevia cartas para todas as versões de si mesma que um dia foram possíveis. Não cartas de saudade ou arrependimento, mas cartas de agradecimento:
"Obrigada, Isadora Casada, por me mostrar o que seria viver sem coragem."
"Obrigada, Isadora Afogada, por me ensinar que às vezes é preciso tocar o fundo para descobrir que sabemos nadar."
"Obrigada, Isadora Selvagem, por me lembrar que existe uma floresta dentro de mim onde habitam todos os meus instintos verdadeiros."
E a mais difícil de todas:
"Obrigada, Isadora Silenciosa, por ter existido durante tanto tempo. Sem você, eu jamais teria aprendido o valor das palavras ditas no momento certo."
Na última página de cada carta, ela sempre acrescentava a mesma frase — não mais como confissão secreta, mas como manifesto público:
"Navegamos múltiplos labirintos simultaneamente. A sabedoria está não em escapar deles, mas em descobrir que somos, ao mesmo tempo, o navegador, o labirinto, e o tesouro escondido no centro."
E quando terminava de escrever, ela dobrava as cartas em barquinhos de papel e os soltava pela janela. Eles flutuavam não na água, mas no ar, carregados pelas correntes invisíveis que ligam todos os corações corajosos, até encontrarem outras pessoas perdidas em seus próprios labirintos, sussurrando-lhes ao ouvido que a saída não é um lugar, mas uma maneira de caminhar.
Assim viveu Isadora — não feliz para sempre, porque a felicidade é estado transitório demais para sustentar uma vida inteira — mas completa para sempre, habitando simultaneamente todas as suas possibilidades, dançando entre elas como uma equilibrista cósmica que descobriu que o abismo não é inimigo, mas parceiro de dança.



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