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Manifesto Pós-Weberiano: Refundar a Ética da Responsabilidade na Era Digital - Uma Análise Histórica, Filosófica e Multidisciplinar

Preâmbulo: O Paradoxo da Liberdade - A Jaula da Razão na Era Digital


Este manifesto pretende destacar a contradição suprema da nossa era: uma aparente liberdade de escolha que, paradoxalmente, nos aprisiona em sistemas que transformam escolhas em algoritmos. Este lamento, contudo, ganha uma dimensão mais profunda ao ser contextualizado historicamente. A ideia de que a racionalização, outrora vista como promessa de emancipação pela Idade do Iluminismo – onde pensadores como Immanuel Kant (2005) convocavam o homem a "ousar saber" (Sapere aude!) [1] e a libertar-se da tutela – converteu-se em uma "gaiola de ferro", como Max Weber (1991) [2] anteviu, para se metamorfosear, hoje, em uma "rede de vigilância líquida".


Filosoficamente, essa transição nos remete ao pessimismo da Escola de Frankfurt, notadamente Theodor W. Adorno e Max Horkheimer (1985) em Dialética do Esclarecimento [3]. Eles argumentaram que a razão, em vez de nos libertar, tornou-se instrumental: um meio para fins puramente técnicos e de dominação, perdendo sua capacidade crítica e emancipatória.


A liberdade sartreana da escolha radical, que impõe ao indivíduo a angústia da responsabilidade total, é aqui confrontada por sistemas que pré-moldam nossas decisões, tornando a agência individual uma ilusão cuidadosamente orquestrada. Como o manifesto sugere, cada like, cada compra, cada rolagem de tela alimenta máquinas que nos conhecem melhor do que nós mesmos. Essa captura digital da vida evoca Michel Foucault (2014) [4] e seu conceito de panóptico em Vigiar e Punir, em que a visibilidade constante gera uma coerção interna. O que Foucault previu como um poder disciplinar em instituições fechadas, Gilles Deleuze (1992), em seu ensaio Post-scriptum sobre as Sociedades de Controle [5], atualizou para uma sociedade de controle aberta e contínua, onde a modulação constante substitui o confinamento. A gaiola de ferro, de estrutura rígida e visível, cede lugar a uma rede flexível e ubíqua, invisível até que suas fissuras nos permitam percebê-la.


É imperativo, portanto, ir além do lamento. Este manifesto, ao clamar por uma refundação da ética da responsabilidade, nos convida a uma reflexão multidisciplinar que atravessa a sociologia da tecnologia, a crítica cultural e a filosofia existencial, buscando entender como a técnica suplantou a política e como o cálculo anestesiou a utopia.


1 Diagnóstico: A Jaula de Vidro – Entre a Burocracia de Aço e a Rede de Cristal

1.1 A Burocracia Algorítmica


A herança weberiana da burocracia clássica, descrita por Max Weber (1991) em Economia e Sociedade [2] como o tipo ideal de organização racional-legal, caracterizada por impessoalidade, hierarquia, regras explícitas e eficiência, foi um produto da modernidade industrial. Surgiu para gerenciar grandes contingentes populacionais e complexas economias de mercado, com o objetivo de garantir previsibilidade e objetividade. No entanto, o texto aponta a evolução para um novo despotismo de plataformas digitais.


Historicamente, essa busca por eficiência pode ser rastreada desde os primórdios da Revolução Industrial, com o taylorismo e o fordismo, que visavam otimizar cada movimento do trabalhador para maximizar a produtividade. A burocracia algorítmica de hoje é o ápice dessa lógica: substitui chefes humanos por códigos inapeláveis, transformando trabalhadores em "motoristas de Uber" ou "entregadores da Amazon" monitorados por sensores e avaliados por algoritmos opacos.


Filosoficamente, essa transição levanta questões perturbadoras sobre a autonomia e a dignidade humana. A impessoalidade da burocracia clássica, que Weber via como um avanço contra o favoritismo, na era algorítmica transforma-se em uma desumanização radical. A crítica de Martin Heidegger (2001) à Gestell (enframing) em sua filosofia da tecnologia ressoa aqui: a tecnologia moderna enquadra o mundo, incluindo o ser humano, como um "recurso disponível" (Bestand) para a otimização e exploração [6]. No contexto da decisão algorítmica, podemos questionar a "banalidade do mal" de Hannah Arendt (1999) [7], não mais ligada a burocratas que meramente "seguem ordens", mas a sistemas que executam decisões com profundas consequências sociais sem a necessidade de um agente humano explícito para assumir a responsabilidade moral. A ausência de accountability torna o sistema invulnerável à crítica ética tradicional.


Do ponto de vista multidisciplinar, a sociologia das organizações examina como as estruturas de poder são reproduzidas e, frequentemente, amplificadas na burocracia digital. A psicologia cognitiva adverte sobre o "viés de automação", onde os humanos tendem a confiar excessivamente em sistemas automatizados, mesmo diante de evidências de falhas, resultando numa "desqualificação" do julgamento crítico humano. A ética da IA e os estudos críticos de dados revelam como os preconceitos sociais são codificados nos algoritmos através de datasets enviesados, perpetuando e exacerbando desigualdades raciais e de gênero, como os exemplos de algoritmos de pontuação de crédito ou sistemas de reconhecimento facial que discriminam minorias, trazidos à luz por instituições como a ProPublica.


1.2 O Carisma como Mercadoria


Weber, ao conceituar o carisma, o via como uma força revolucionária, capaz de romper com a rotina e as estruturas estabelecidas, baseando-se na crença dos seguidores nas qualidades extraordinárias de um líder. Historicamente, figuras como Joana d’Arc ou Gandhi encarnavam essa capacidade de mobilizar as massas para a ruptura. Contudo, o século XX, com o advento da mídia de massa (rádio, cinema) e o trabalho de figuras como Edward Bernays, pai das "relações públicas", demonstrou como o carisma podia ser sistematicamente fabricado e manipulado. A era digital, com suas redes sociais e big data, representa um salto qualitativo nessa fabricação. Políticos como Donald Trump, e influencers como Kim Kardashian, não apenas "utilizam as redes sociais", mas as habitam, criando personas meticulosamente calibradas para maximizar o engajamento.


Filosoficamente, Jean Baudrillard (1991), com sua teoria do "simulacro" e da "hiperrealidade", nos oferece uma lente para compreender essa dominação 2.0. Para Baudrillard, a distinção entre o real e a simulação desaparece, e a imagem mediada torna-se mais "real" que a própria realidade [8]. O influencer é o simulacro perfeito: uma persona construída cuja "autenticidade" é um efeito de engenharia digital, medida em likes e shares. O que era uma "força de ruptura" na concepção weberiana, agora é uma commodity sujeita à lógica do "mercado de atenção". Michel Foucault (2014), ao analisar a relação entre discurso e poder [4], nos ajudaria a entender como a "verdade" do carisma é produzida e legitimada por meio de práticas midiáticas específicas e pelas affordances tecnológicas das plataformas.


Multidisciplinarmente, os estudos de mídia e a psicologia social exploram a economia política da atenção e como teorias como a da comparação social impulsionam o engajamento com figuras midiáticas. Fenômenos como os "relacionamentos parassociais" – a ilusão de uma conexão íntima com figuras públicas – são explorados para entender a lealdade dos seguidores. Na ciência política, a fabricação do carisma digital contribui para a polarização afetiva e a política da pós-verdade, onde apelos emocionais e a percepção de autenticidade muitas vezes superam o debate racional e factual. A "morte do profeta", como afirma o manifesto, não é a morte do impacto, mas a morte da sua natureza disruptiva em favor de uma causa única: o engajamento.


1.3 A Ética Protestante no Século Digital


Weber argumentou em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (2004) [9] que a ascese calvinista – a ideia de que o sucesso mundano e o trabalho árduo eram sinais de predestinação divina e um modo de glorificar a Deus – inadvertidamente forneceu a base moral para o desenvolvimento do capitalismo moderno. Com a secularização, o "espírito do capitalismo" permaneceu, mesmo quando a fé religiosa diminuiu, como um imperativo internalizado para a produtividade e a acumulação.


Filosoficamente, Friedrich Nietzsche (1998) já havia criticado os ideais ascéticos e a "moral de rebanho", que via na auto-abnegação e na busca incessante por objetivos externos uma forma de auto-opressão [10]. No século digital, essa ascese retorna "sem transcendência": trabalhamos "12 horas/dia não para a glória de Deus, mas para pontuações em rankings de produtividade".


Herbert Marcuse (2015) em O Homem Unidimensional [11], descreveu como a racionalidade tecnológica e o consumismo absorvem o pensamento crítico, criando uma sociedade onde o potencial de libertação é contido, e o indivíduo se torna uma extensão do sistema de produção e consumo.


O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han (2017), em Sociedade do Cansaço e Psicopolítica [12], aprofunda essa crítica, argumentando que vivemos numa "sociedade de desempenho" (Leistungsgesellschaft), onde o indivíduo, livre de coerções externas explícitas, torna-se o seu próprio explorador, impulsionado por um imperativo interno para "otimizar-se". A "cultura do hustle", que glorifica o esgotamento, e a ansiedade que substitui a culpa calvinista, são manifestações dessa auto-exploração.


Do ponto de vista multidisciplinar, a psicologia do trabalho e a saúde mental documentam o aumento de síndromes como o burnout e a ansiedade relacionada à performance. A economia do trabalho analisa a precarização e a desregulamentação da jornada de trabalho impulsionadas pela economia gig, onde a fronteira entre vida pessoal e profissional se dissolve. A psicologia da gamificação revela como aplicativos de bem-estar como Headspace ou Calm, embora prometam alívio, podem paradoxalmente reforçar a ideia de que a felicidade é uma métrica a ser otimizada, transformando o autocuidado em mais uma tarefa de produtividade. A "culpa é um bug", mas a correção proposta é mais um algoritmo de auto-aperfeiçoamento, e não uma mudança estrutural.


2 Princípios para uma Ação Pós-Weberiana – Reconstruindo a Humanidade na Fragmentação


Diante desse diagnóstico, o manifesto propõe caminhos para a ação, buscando refazer o tecido social e ético que a racionalização digital fragmentou.


2.1 Reivindicar a Ambiguidade


Filosoficamente, este princípio encontra eco na fenomenologia crítica, que valoriza a complexidade e a riqueza da experiência vivida em detrimento de categorizações abstratas e quantificações. A ética de Emmanuel Lévinas (1988) [13], que insiste na alteridade irredutível do Outro e resiste a qualquer sistema totalizador que o reduza a um conceito ou métrica, inspira essa valorização do que não pode ser capturado pela lógica utilitária. O "improdutivo, o lento, o ritual" são esferas de resistência à uniformização e à mercantilização, espaços onde o significado surge da não-finalidade.


Multidisciplinarmente, a arte e a estética oferecem um terreno fértil para cultivar experiências não utilitárias, desafiando a perspectiva racionalizada. O conceito japonês de wabi-sabi, que celebra a beleza na imperfeição, transitoriedade e incompletude, serve como um poderoso contraste à busca digital pela perfeição e otimização. Movimentos como slow food ou digital detox não são apenas tendências de consumo, mas atos de micro-resistência que reafirmam a primazia da qualidade de vida sobre a quantidade de produção ou de engajamento. A filosofia ambiental também se alinha, ao valorizar ecossistemas por seu valor intrínseco, e não apenas por seu potencial como recurso.


2.2 Tecnodiversidade


A ideia de "tecnodiversidade" advoga por um "pluralismo de sistemas" para contrariar o "monopólio tecnocrático". Historicamente, a colonização e a globalização impuseram modelos tecnológicos e epistemológicos ocidentais, marginalizando e destruindo saberes e práticas locais. A tecnodiversidade, portanto, é um chamado à decolonização tecnológica.


Filosoficamente, essa noção dialoga com o trabalho de Bruno Latour (1994) e sua teoria do "ator-rede", que enfatiza a intrincada relação entre humanos e não-humanos (incluindo tecnologias) na construção da realidade social [14]. Latour sugere que diferentes assemblagens de humanos e tecnologias podem gerar diferentes realidades [14]. Bernard Stiegler (2005), em Técnica e Tempo [15], argumenta que a técnica, embora fundamental para a humanidade, pode levar à perda do savoir-faire (saber fazer) e do savoir-vivre (saber viver), advogando por uma "diversidade epistemológica" que preserve e crie múltiplos modos de ser e criar.


Em termos multidisciplinares, a antropologia da tecnologia estuda como diferentes culturas integram e desenvolvem tecnologias de maneiras que refletem seus valores e estruturas sociais. Os estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade (STS) examinam a construção social da tecnologia e as políticas intrínsecas às escolhas de design. Exemplos incluem movimentos de software de código aberto (Linux, Wikipédia), que oferecem modelos colaborativos e não proprietários de desenvolvimento tecnológico, ou o ressurgimento de artesanatos tradicionais e agricultura sustentável como formas de resistir à monocultura industrial. Moedas locais e plataformas cooperativistas, como Fairbnb, são expressões dessa busca por alternativas éticas e descentralizadas.


2.3 A Ética da Corresponsabilidade


Esta seção propõe a "ética da corresponsabilidade", deslocando o foco da "ética weberiana da responsabilidade" individual para uma abordagem coletiva. Weber (2004) [9] se preocupava com as consequências previsíveis das ações de um agente. Contudo, na era dos algoritmos e da interconexão global, a cadeia de causalidade é difusa e os impactos são sistêmicos. Filosoficamente, essa mudança se alinha com a ética do cuidado, que prioriza a relacionalidade, a interdependência e a atenção às vulnerabilidades (como defendido por Carol Gilligan (1982) [16] e Nel Noddings (1984) [17]). Também se conecta profundamente com o "Princípio da Responsabilidade" de Hans Jonas (2006) [18], que argumenta pela necessidade de uma ética que leve em conta o impacto coletivo e de longo prazo da tecnologia, dada sua capacidade sem precedentes de transformar a vida no planeta. Um algoritmo, como o manifesto bem salienta, "não é neutro; nenhuma inovação é apolítica".


Multidisciplinarmente, o direito e a governança são desafiados a criar frameworks legais para responsabilizar sistemas algorítmicos opacos e as entidades corporativas por trás deles. O conceito de "responsabilidade algorítmica" (algorithmic accountability) é central aqui. A sociologia da ciência e da tecnologia demonstra que a tecnologia não é um dado neutro, mas é moldada por valores sociais, dinâmicas de poder e escolhas humanas. As "auditorias cidadãs em sistemas de IA", como as promovidas pela Algorithmic Justice League (2025) [19], são exemplos práticos dessa ética, buscando transparência e justiça em decisões automatizadas.


2.4 Reencantar o Mundo sem Illusionismo


Weber, em sua análise da racionalização (1991;2004) [2;9], cunhou o termo Entzauberung der Welt – o "desencantamento do mundo" – para descrever a perda de significado mágico e místico, substituído pela explicação científica e pela lógica instrumental. Esta seção clama por "reencantar o mundo sem illusionismo", não como um retorno à superstição, mas como uma busca por significado e maravilha num mundo hiper-racionalizado. Filosoficamente, isso ecoa Walter Benjamin (2012) [20] e seu conceito de "aura" na obra de arte, perdida na reprodução mecânica – uma dimensão de experiência que transcende a mera utilidade. É também um chamado à imaginação utópica, como Ernst Bloch (2005) descreveu em O Princípio Esperança [21], como um contraponto necessário às distopias tecnológicas.


Multidisciplinarmente, o urbanismo e a arquitetura podem criar espaços públicos que fomentem a conexão, a beleza e a experiência comunitária, resistindo à mercantilização de cada metro quadrado. A filosofia ambiental contribui com a busca por uma conexão espiritual e um respeito reverencial pela natureza, para além de seu valor instrumental.

Exemplos práticos incluem a promoção de arte pública e espaços de convívio não mercantilizados, como parques comunitários ou bibliotecas, onde as pessoas podem se reunir sem a pressão do consumo, cultivando "sentidos que transcendam o utilitarismo".


3 Ações Concretas: Ferramentas para Escapar da Jaula – Rumo à Agência Pós-Digital


A transição de princípios para ações concretas é crucial, delineando táticas para exercer agência dentro e contra a jaula digital.


3.1 Desobediência Algorítmica


A "desobediência algorítmica" se impõe como uma tática central. Filosoficamente, isso se inspira na tradição da desobediência civil (Henry David Thoreau (2012) [22], Mahatma Gandhi (2001) [23], Martin Luther King Jr. (2018) [24]), transposta para o domínio digital. É um ato de agência individual e coletiva contra um controle sistêmico, buscando "desestabilizar a lógica da previsibilidade total". A desobediência algorítmica busca tornar os dados menos confiáveis e os algoritmos menos eficazes, introduzindo ruído no sistema de vigilância. Isso evoca o conceito situacionista de détournement – a apropriação e desvio de elementos existentes para novos propósitos, subvertendo a lógica do espetáculo.


Do ponto de vista multidisciplinar, essa abordagem se situa na interseção da cibersegurança, dos direitos digitais e dos movimentos sociais. O uso de ad blockers, a recusa de termos de uso abusivos, a criação de perfis falsos para confundir sistemas de vigilância e a adoção de VPNs são ferramentas de autodefesa digital. O desenvolvimento e a adoção de sistemas operacionais focados na privacidade (como GrapheneOS), navegadores (Brave, Tor) e redes sociais descentralizadas (Mastodon) são formas de "fuga" das plataformas dominantes, construindo alternativas que resistem à lógica do capitalismo de vigilância.


3.2 Burocracias Afetivas


A proposta de "burocracias afetivas" é uma audaciosa reinjeção de empatia e humanidade em sistemas que Weber (1991) [2] concebeu como essencialmente impessoais. Isso desafia a premissa weberiana de que a impessoalidade é a garantia da justiça e da objetividade. Pelo contrário, argumenta que a ausência de afeto pode levar a decisões brutalmente injustas e desumanas em estruturas que se tornaram excessivamente despersonalizadas. Se a burocracia weberiana buscava a eficiência através da impessoalidade e da aplicação de regras universais, a "burocracia afetiva" reconhece que a aplicação cega da regra pode gerar injustiça e desumanização. Historicamente, movimentos sociais e de direitos civis sempre lutaram contra a rigidez institucional que desconsidera as particularidades e as necessidades humanas. A criação de "ouvidorias humanizadas e processos participativos" é uma resposta direta à alienação que a burocracia clássica e algorítmica podem gerar.


Filosoficamente, essa ideia dialoga com a filosofia da práxis, que enfatiza a ação transformadora e a superação da dicotomia entre teoria e prática. A ética da alteridade de Lévinas (1988) [13], já mencionada, ressurge aqui como um imperativo para o reconhecimento do outro em sua singularidade, contrariando a padronização inerente aos sistemas burocráticos. A proposta de projetos de design thinking em hospitais, como o Empathy Lab da Mayo Clinic (2024) [25], exemplifica uma abordagem que busca integrar a sensibilidade humana e a experiência do usuário (ou, neste caso, do paciente) no cerne do design de serviços, superando a mera aplicação técnica. No campo do direito, a "humanização da justiça" e a busca por "justiça restaurativa" são exemplos análogos que buscam ir além da mera aplicação da norma, considerando o impacto humano e as relações interpessoais.


Multidisciplinarmente, a sociologia do serviço público analisa a importância da relação entre o cidadão e o Estado, e como a qualidade dessa interação afeta a legitimidade e a eficácia das instituições. A psicologia social oferece insights sobre a empatia e a comunicação interpessoal como ferramentas essenciais para construir confiança e resolver conflitos. A pedagogia crítica e a andragogia (educação de adultos) defendem a participação ativa dos envolvidos na construção do conhecimento e na tomada de decisões, princípios que podem ser transpostos para o redesenho de serviços públicos.


3.3 Universidade como Espaço de Risco


O apelo para a "Universidade como Espaço de Risco" é uma crítica direta à "McUniversidade", um termo pejorativo que evoca a lógica da McDonalização, descrita por George Ritzer (2001) [26]: eficiência, calculabilidade, previsibilidade e controle, aplicadas ao ensino superior. Historicamente, a universidade, desde sua origem medieval, foi concebida como um locus de pensamento crítico, debate livre e busca do conhecimento por si mesmo. Contudo, ao longo do século XX e início do XXI, a pressão por financiamento, a ênfase em métricas de produtividade (publicações em periódicos de alto impacto, citações, patentes) e a instrumentalização da pesquisa para fins comerciais ou de mercado transformaram-na numa "fábrica de diplomas" ou "provedora de soluções" para o capital.


Filosoficamente, essa crítica ressoa com a tradição da filosofia da educação que defende a Bildung (formação) em oposição ao mero treinamento (Ausbildung) [27]. Pensadores como Wilhelm von Humboldt (1993) [28] idealizaram a universidade como um espaço para a formação integral do indivíduo, onde a pesquisa e o ensino estariam intrinsecamente ligados, e a autonomia intelectual seria valorizada acima de tudo. Theodor W. Adorno, em Teoria Estética (1998) [29], defendia o valor do "não-útil", do que resiste à apropriação instrumental. A universidade, para ele, deveria ser um refúgio da lógica mercantil. A ideia de "laboratórios de incerteza" e "cátedras de ociosidade criativa", como o Institute for Advanced Study, é um contraponto à pressão por resultados imediatos, reafirmando o valor da pesquisa fundamental, teórica e especulativa [30].


Multidisciplinarmente, a sociologia da ciência e a economia da educação investigam as pressões e transformações pelas quais as instituições de ensino superior têm passado, analisando o impacto dos rankings, da precarização docente e da privatização. A pedagogia crítica argumenta contra a mercantilização do conhecimento e pela valorização da autonomia intelectual e da pesquisa engajada com os problemas sociais. O Judiciário também se depara com a necessidade de fomentar o pensamento jurídico mais aprofundado, que transcenda a mera aplicação de precedentes e se abra a reflexões filosóficas e históricas sobre o direito.


3.4 Política do Cuidado Radical


A proposta de uma "Política do Cuidado Radical" é um dos pilares mais inovadores e transformadores do manifesto. Ela busca redefinir o poder, substituindo a lógica da dominação pela "ética do cuidado mútuo". Historicamente, a política tem sido dominada por narrativas de poder, competição e hierarquia, muitas vezes associadas a modelos patriarcais e coloniais. A crítica feminista, em particular, tem demonstrado como a esfera do cuidado, tradicionalmente marginalizada e associada ao trabalho feminino não remunerado, é, na verdade, fundamental para a reprodução da vida e da sociedade.


Filosoficamente, essa perspectiva se alicerça profundamente na ética do cuidado, já mencionada, mas também em filosofias decoloniais e feministas. Pensadoras como María Lugones (2014) [31], bell hooks (2019) [32] e Vandana Shiva (2001) [33] argumentam que a dominação não é apenas política ou econômica, mas também epistêmica, e que as cosmologias e práticas de cuidado de povos indígenas e culturas não ocidentais oferecem modelos alternativos de relação com o mundo e com o outro. O "cuidado radical" implica uma reorientação axiológica completa, colocando a sustentabilidade da vida e o bem-estar coletivo no centro das decisões políticas. Isso exige uma "incorporação de saberes feministas e decoloniais", questionando as bases eurocêntricas e androcêntricas do pensamento político dominante.


Multidisciplinarmente, a economia feminista propõe modelos que reconhecem e valorizam o trabalho de cuidado, tradicionalmente invisibilizado pelo Produto Interno Bruto (PIB). A ecologia política conecta a exploração da natureza à exploração social, argumentando que uma ética do cuidado é essencial para a justiça ambiental. A ciência política participativa explora mecanismos como "orçamentos participativos com cotas para idosos e crianças, como em Porto Alegre", que garantem que vozes historicamente marginalizadas sejam ouvidas e que as prioridades sejam definidas de forma mais inclusiva e equitativa. Isso não é apenas uma questão de alocação de recursos, mas de redefinição de quem tem o direito de participar na construção da pólis.


4 Conclusão: A Jaula é uma Ponte, Não uma Prisão – Rumo a um Devir Ético na Era Digital


A conclusão do manifesto, ao afirmar que "a jaula é uma ponte, não uma prisão", oferece uma perspectiva de esperança e agência. Weber (1991) [2], de fato, via a racionalização como ambivalente. Sua análise não era um mero lamento, mas um diagnóstico sóbrio das tendências da modernidade. Ele nos legou a ferramenta da sociologia compreensiva para entender as estruturas que nos cercam, mas também a "coragem de pensar no escuro".

Historicamente, a humanidade sempre se confrontou com tecnologias que, de um lado, prometiam libertação e, de outro, impunham novas formas de controle. A prensa tipográfica, que democratizou o conhecimento, também permitiu a propaganda em massa.


A energia nuclear, com seu potencial energético ilimitado, também abriu as portas para a aniquilação total. A questão nunca foi a tecnologia em si, mas as relações de poder e os valores que a moldam e a controlam. A jaula de vidro do século XXI tem fissuras porque as pessoas, em diferentes momentos da história, sempre encontraram maneiras de resistir, adaptar e subverter sistemas opressivos. As "greves de dados, como a campanha #DeleteFacebook, cooperativas de plataforma, como a Drivers Cooperative em Nova York, e novas formas de comunidade, como redes de apoio mútuo durante a pandemia", são exemplos contemporâneos dessa resistência. Elas representam a agência humana emergente em um cenário de controle algorítmico, o que Slavoj Žižek (1999) [34] chamaria de "ato", uma intervenção radical que abre novas possibilidades.


Filosoficamente, essa conclusão nos convoca a um existencialismo engajado. A racionalização não é um destino inescapável, mas uma construção humana que pode ser desconstruída e reconstruída. A frase "A gaiola só será eterna se esquecermos que fomos nós quem soldou suas barras — e que podemos derretê-las" é um convite à autorreflexão crítica e à responsabilidade coletiva. Jean-Paul Sartre (2005) [35], ao falar da "condenação à liberdade", enfatizou que somos responsáveis por nossas escolhas e, portanto, pela construção de nosso mundo. O convite a "usar a razão para servir à vida, não ao contrário" é um retorno à razão substantiva (em oposição à razão instrumental), que busca fins humanos e éticos, e não apenas meios eficientes [36].


Multidisciplinarmente, a cibercultura e os estudos de redes sociais analisam como as ferramentas digitais podem ser apropriadas para fins de resistência e organização social, como visto em movimentos como a Primavera Árabe (apesar de suas complexidades posteriores). A antropologia digital estuda a formação de novas identidades e comunidades no ciberespaço, algumas das quais buscam conscientemente reintroduzir a ambiguidade, a lentidão e o cuidado. A resiliência e a capacidade de adaptação humanas, estudadas pela psicologia positiva e pela sociologia dos movimentos sociais, são fontes de otimismo.


Este manifesto, ao final, não é um plano, mas uma proposta de ethos. É um chamado para que todos nós, enquanto cidadãos e pensadores, não nos resignemos à "fatalidade da técnica", mas busquemos ativamente formas de re-humanizar a era digital, reencantando-a com significado e propósito.


Assinam este manifesto:

Os que recusam ser dados.

Os que preferem perguntas a algoritmos.

Os que insistem em dançar, mesmo sob a luz fria dos holofotes digitais.


P.S. Weber sorriria, cáustico, diante de nossa audácia. Mas é precisamente essa a herança que ele nos deixou: a coragem de pensar no escuro.


Referências


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  36. Horkheimer M. Eclipse da Razão. Tradução de Carlos Alberto Pavanelli. 2a ed. São Paulo: Centauro; 2002.

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